A beleza e a fúria
- joserezendejr
- 20 de fev.
- 9 min de leitura
Atualizado: 18 de abr.
(revista Traços, nº 47 / agosto de 2020)
Por José Rezende Jr.
Fotos de Letícia De Maceno
Vencedor de quatro prêmios Vladimir Herzog, Fernando Lopes faz da ilustração uma denúncia das mazelas do humano e, ao mesmo tempo, uma busca pelo sentido da existência

Lembra aqueles desenhos que a gente fazia quando criança? Os bonequinhos estilo palito, representando o papai e a mamãe? As casinhas com chaminés soltando fumaça? As arvorezinhas coloridas com lápis de cor verde, carregadas de maçãs vermelhas?
Pois pode esquecer. O garoto Fernando Lopes gostava mesmo era de desenhar cabeças humanas suspensas por fios. Como se a declarar, ainda de forma intuitiva, que somos marionetes sem vontade própria, condicionadas a viver da maneira que nos é imposta por entidades opressoras que ele na época não saberia nomear, mas que hoje podemos chamar de Estado, Religião, Meios de Comunicação etc etc.
"Desde muito cedo percebi que não era livre. E quem é livre? Quem se sente livre? Eu simplesmente sentia que estamos todos de algum modo presos, condicionados. Este não é só um desenho, eu já estava querendo dizer algo", ela reflete hoje, aos 64 anos, folheando o caderno com seus primeiros desenhos, que guarda desde os 9.
Há meio século o ilustrador Fernando Lopes, quatro vezes ganhador do cobiçado Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, desenha para dizer algo, seja ao público que visita as exposições de suas obras, seja a leitores e leitoras de Jornal de Brasília e Correio Braziliense, nos quais se consolidou como um dos mais importantes ilustradores brasileiros.
A cada vez que olha, hoje, as ilustrações que durante 30 anos contaram histórias nas páginas dos jornais, o criador se espanta com a atualidade dessas criaturas feitas com indignação e guache sobre papel. Sobressaem-se os desenhos sobre temas indigestos, como violência, desigualdade social, corrupção e violação de direitos humanos, publicados há duas ou três décadas, mas que parecem ter sido feitos hoje de manhã, após sua tradicional caminhada do Sudoeste, onde mora, até a Catedral Rainha da Paz, no Eixo Monumental.
"Eu fico impressionado, porque são desenhos de décadas atrás, mas eles estão falando sobre hoje. Parecem mais atuais do que estavam na época. Aí eu penso: então não eram desenhos feitos só pra ilustrar uma matéria de jornal, é algo que de algum modo sobrevive à notícia. Meu trabalho está vivo."
É verdade que as mazelas brasileiras se perpetuam por décadas, séculos a fio. Mas é também impossível negar o mérito do artista, capaz de enxergar além do tempo. Ele, porém, descarta qualquer dom de prever o futuro.
"Profeta não é o cara que fala do que vai acontecer, é o que fala do que sempre acontece. Profeta não antecipa, ele vê o que acontece", afirma, olhos sempre atentos ao que acontece.
As mazelas do humano
Há, na obra de Fernando Lopes, também espaço para o lírico, entrevisto nos livros infantis sobre os quais debruçou sua arte, e até mesmo em algumas ilustrações veiculadas na mídia. Mas a marca referencial de sua obra é mesmo "a construção de seres deformados, que representam mazelas do humano", como aponta Graça Ramos, doutora em História da Arte pela Universidade de Barcelona, autora do texto de apresentação do livro A arte de ilustrar, que reúne trabalhos do artista.
"Fernando Lopes tem importância fundamental para Brasília e para o Brasil, pois arte e política são pilares de sua existência. Excelente ilustrador, sua vasta produção nos oferece olhar crítico sobre a vida, exibindo seus encantos e estranhamentos. Desvios no exercício do poder, em especial, recebem dele comentários carregados de beleza e fúria", ela analisa.
Durante 30 anos, as ilustrações que os editores dos jornais encomendavam a Fernando Lopes eram sobretudo para matérias carregadas dessas "mazelas do humano". Não por acaso, como ele reconhece.
"Eram quase sempre as pautas dolorosas que chegavam para mim. Elas não podiam ir pro caricaturista, ou pro cara que trabalhava o humor, ou pro que desenhava bichinhos maravilhosos. Vinham pra mim, o cara trágico, o que leva as coisas a sério. Eu sei trabalhar esse universo. Não tenho talento para a felicidade, infelizmente", brinca, meio sério.
"Talvez a tristeza"

Fernando Lopes cresceu entre obras de arte assinadas pelo tataravô materno, o espanhol Miguel Navarro y Cañizares (1835-1913). Nascido em Valencia, Cañizares fez sua formação artística em Roma, viveu na Venezuela e veio para o Brasil em 1870, onde fundou a Escola de Belas Artes da Bahia. As naturezas mortas, as paisagens e sobretudo os retratos pintados pelo ancestral ilustre povoavam as paredes da casa da infância, no Rio de Janeiro, e o imaginário do menino.
"Tive essa convivência, cresci com os quadros do Cañizares. Estavam lá, na parede de casa, Apoteose de Simón Bolívar, Maria Madalena Chorando, Os amores felizes, Os amores infelizes, laranjas maravilhosamente pintadas, o retrato da minha bisavó... Uma criança não tem a menor ideia do que é aquilo, mas aquilo de algum modo tá dizendo pra ela que existe uma coisa chamada arte, né?"
A falta de uniformidade é uma das características de Cañizares, que pintou de quase tudo: temas religiosos, nus, naturezas mortas, retratos...
"É um pintor estranho. Viveu numa época de transição, final do século 19, início do século 20, e acho que ficou meio perdido. Mas talvez essa incerteza, essa falta de uniformidade seja um valor, sabe?", sugere o tataraneto.
"Tem algo de desagradável no trabalho dele, mas isso talvez também seja um valor, o valor humano do cara. A única crítica que saiu quando ele estava vivo fala do 'modo triste do Cañizares'. Ele era bizarro, meio desagradável, triste. Mas fazer o quê? A vida não é um pouco assim?"
Para ilustrar o que diz, Fernando Lopes mostra uma pintura do tataravô na parede do seu apartamento, Os amores felizes, que forma uma trilogia com Os amores infelizes e Os amores trágicos.
"Minha netinha de dois aninhos olhou este quadro e disse: 'Dodói'. É assim: tudo em Cañizares dói, até os amores felizes", brinca.
Graças Ramos identifica uma afinidade artística entre Fernando Lopes e o tataravô. "Os dois artistas demonstram apreço pelo uso de uma gama de texturas e matizes, baseados no claro-escuro e possibilitados pela gradação de pretos, brancos, cinzas, chumbos, grafites", analisa ela.
Já Fernando Lopes é mais sucinto. Quando perguntado sobre o que herdou do ancestral artista, responde, meio sério, meio de brincadeira: "Talvez a tristeza".
Gente em pedaços
Aos 9 anos, Fernando ganhou de presente um bloquinho de desenhos. Aos 15, fez a primeira exposição, no Chile, onde morou com a família durante dois períodos: dos 5 aos 8 e dos 11 aos 17 anos.
Um dia, mostrou os desenhos para o seu primeiro amor, a chilena Pilar, que por sua vez mostrou para o pai, o professor, psicólogo, antropólogo, poeta e pintor
Rolando Toro, criador da Biodança.
"Eres un artista", sentenciou Rolando Toro, que tratou de organizar uma exposição no Instituto Cultural de Las Condes, em Santiago. E escreveu, no texto de apresentação da exposição do jovem artista: "Sua arte configura uma mistura de assombro e curiosidade."
Fernando Lopes iniciaria a carreira de ilustrador mais adiante, na Costa Rica, onde cursou o ensino médio e fez trabalhos free lancers para jornais e revistas locais. De volta ao Brasil, continuou ilustrando para veículos de comunicação, sempre como free lancer. O primeiro emprego com carteira assinada seria em Brasília, onde veio morar em 1982.
Ele bateu na porta do hospital Sarah Kubistchek e mostrou seu portfólio para o poeta Tetê Catalão, chefe de comunicação do hospital. Conseguiu o emprego, e foi trabalhar cercado de artistas de primeira grandeza. Além do poeta Tetê Catalão, tinha como colegas o mestre Luís Humberto, chefe do departamento de fotografia, e ninguém menos que Athos Bulcão, responsável pelas divisórias e esculturas de parede.
Fernando fazia as artes finais de formulários médicos. Era então um jovem de 25 anos, "meio complicado, pretensioso e muito imaturo", como se define, mas conquistou a simpatia de Athos Bulcão.
Um dia, Athos foi visitar a exposição de desenhos que Fernando organizou no apartamento onde morava. Gostou do que viu, e decidiu indicar o jovem colega para o cargo de desenhista do laboratório de anatomia humana do hospital.
A indicação foi aprovada pelo fundador e diretor do Sarah, Aloysio Campos da Paz. Fernando ficou feliz com a promoção, até descobrir quais seriam seus "modelos".
"Eu nunca tinha entrado no laboratório de anatomia. Fui lá conhecer. Era um museu de horrores! Fetos, tumores, aquelas coisas dentro do álcool, coisas horrorosas. Quando eu vi aquilo, liguei pro Athos e falei: 'Não quero não, aquilo lá é horrível!'. E o Athos: 'Não dá, o doutor Campos adorou seu trabalho, a vaga é sua'. E aí tive que encarar. Um assistente pegava três ombros, botava numa bandeja e levava pra minha mesa. Eu desenhava pedaços de gente!"
O local de trabalho também não ajudava. A sala de desenho do laboratório de anatomia era originalmente a sala de velório, por onde saíam os corpos dos pacientes mortos. Havia um corredor enorme, com os laboratórios, o museu de anatomia, a sala de dissecação, as geladeiras onde os cadáveres eram armazenados e, finalmente, a sala de desenho.
"Muitas vezes eu cheguei pra trabalhar e na minha sala tinha um corpo enrolado num lençol, porque não havia mais espaço nas geladeiras. Vi familiares vindo buscar seus mortos. Vi enfeitarem caixão com flor dentro da minha sala de desenho. Botavam o caixão, tiravam o cadáver da geladeira, botavam dentro do caixão, os familiares faziam o reconhecimento, os funcionários da funerária botavam dentro do rabecão e levavam embora."
Para sobreviver emocionalmente, desabafava enchendo as laterais das ilustrações científicas com desenhos em miniatura. A mais significativa dessas "escritas desenhadas", como ele chama, recebeu o título de "Homem fugindo da liberdade". O homem era ele.
Mas a passagem pelo museu de horrores teve também um lado positivo, ele reconhece.
"Foi um aprendizado técnico muito, muito rico. Porque além de aprender a anatomia, eu tive que aprender também a representar texturas, transparências, todo tipo de coisa. Mas eu achava um horror. Imagina: o cara quer virar artista e aí tá trabalhando em horário integral no Sarah, que era de uma rigidez atroz, muito pior do que o exército, com dedicação exclusiva, e desenhando cadáver! Eu queria morrer."
Mas não morreu. E levou para o emprego seguinte, como ilustrador do Correio Braziliense, não apenas o aprendizado do corpo humano, mas também tudo o que aprendeu convivendo tão de perto com a morte. "Algo desse desespero está em meus trabalhos, sem dúvida", ele diz.
"A obra do Fernando faz parte da memória, do imaginário da cidade. Por gerações, suas ilustrações ajudaram a informar e traduzir, a imaginar as notícias que não apenas pelas palavras", avalia Oto Reifschneider, curador da mostra Fernando Lopes, 50 anos de desenho, realizada na Caixa Cultural em 2019.
No Correio Braziliense, Fernando Lopes conquistou o merecido reconhecimento, a ponto de ter suas ilustrações inúmeras vezes estampadas na capa do jornal, "roubando" o protagonismo das fotografias.
Subeditor da Revista do Correio entre 2009 e 2017, o jornalista Gustavo Falleiros lembra que páginas inteiras do jornal chegaram a ser diagramadas a partir das ilustrações de Fernando Lopes, quando o normal seria o contrário, que a ilustração se adaptasse à diagramação da página.
"O Fernando conseguiu uma coisa muito rara e que não pode ser alcançada de forma intencional, deliberada, que foi inscrever a obra no imaginário da cidade, na cabeça do brasiliense. Tudo o que ele faz tem densidade simbólica. O tipo de síntese que ele busca dialoga com o inconsciente. Aposto que os leitores sonhavam com os desenhos dele, sem saber ao certo de onde vinham aquelas figuras", afirma Falleiros.

O lírico e o trágico
Há quatro anos longe das redações, Fernando Lopes vive uma espécie de período sabático. Temporariamente liberto da camisa de força que é o prazo de fechamento dos jornais, desenha quando tem vontade, sobretudo flores que ele mesmo inventa. Apaixonado pela natureza, dedica-se à luta permanente pela preservação do Parque das Sucupiras, que ajudou a criar há quase duas décadas.
Durante a entrevista, exibe com o orgulho o protótipo do símbolo que ele criou para o Parque das Sucupiras, recém-saído de uma impressora 3D emprestada, que ele planeja reproduzir e vender na banca da Conceição Freitas, na 308 Sul, para angariar fundos destinados à preservação do parque. A leveza do brinquedinho, metade silhueta de pássaro/metade rosto humano sorrindo, contrasta com o peso do traço que o tornou famoso.
"Eu tenho um lado lírico além do trágico. Meu trabalho não tem humor, mas tem poesia", explica.

A outra atividade à qual se dedica com paixão e afinco é o ensino. Professor de história da arte numa escola pública, Fernando ensina muito mais do que história da arte a seus alunos adolescentes.
Numa das aulas, mostra o desenho das cabeças suspensas por fios que fez quando criança, para dizer que é preciso sair dos trilhos e ir em busca do sentido.
"É mais fácil você seguir o trilho, o trilho foi feito pra você seguir e fazer tudo o que esperam de você. Mas faz sentido? Faz sentido você todo dia esperar chegar seis da tarde? Toda semana chegar sexta-feira? Todo ano chegarem as férias? A vida inteira esperar a aposentadoria? A gente tem que pelo menos buscar o sentido. Porque é sempre uma busca, nunca se chega. Mas a gente deve, pelo menos, buscar", ensina.
Comments