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A relevância do olhar possível

Atualizado: há 4 dias

(revista Traços, nº 20 / setembro de 2017)


Por José Rezende Jr.

Fotos: Bento Viana


Um dos maiores nomes da fotografia brasileira e um de seus grandes pensadores, Luís Humberto ajudou a libertar o fotojornalismo do enquadramento convencional. Mas, por conta da doença, parecia ter o olhar para sempre enquadrado pela impossibilidade de uma cadeira de rodas. Até que decidiu fotografar a partir de um outro ponto de vista: o de quem enxerga o mundo justamente a partir de uma cadeira de rodas.


 

Fotos: Bento Viana

Antes, era o que parecia ser: a definitiva impossibilidade. Com os graves problemas de locomoção provocados pela doença, veio o abandono de um ofício – muito mais que um ofício, uma paixão – que tem a idade de seu filho mais velho: 55 anos. 


Como seguir fotografando, se já não é possível subir num ponto mais elevado, agachar-se ou sentar-se no chão em busca do melhor ângulo, correr atrás da melhor foto?  


Um dos maiores nomes da fotografia brasileira e um de seus grandes pensadores, o artista que ajudou a libertar o fotojornalismo do enquadramento convencional parecia ter o olhar para sempre enquadrado pela impossibilidade de uma cadeira de rodas.


Mas, em seguida, veio o que passou a ser: uma nova possibilidade. Fotografar a partir de um outro ponto de vista, o de quem enxerga o mundo justamente a partir de uma cadeira de rodas. 


E começou a nascer a exposição Reforma do olhar possível. Prevista para 2018, a exposição virou notícia não por se tratar de uma mostra inédita do mestre Luis Humberto (a primeira com fotografias digitais), mas pelo motivo errado: a inesperada rejeição do projeto pelo Fundo de Apoio à Cultura (FAC). 


Com uma agravante, que elevou ainda mais a temperatura dos protestos da classe artística brasiliense: o projeto foi reprovado porque não atingiu a nota máxima no quesito "relevância da obra”. 

 

O que nos leva à seguinte questão: se a obra – qualquer obra – de um artista da estatura de Luis Humberto não tem relevância para o FAC, o que tem, afinal, relevância?



A grande arte


Um dos fundadores da Universidade de Brasília (UnB), Luis Humberto fez parte do primeiro grupo de professores do Instituto Central de Artes, ao lado de Athos Bulcão, Ceschiatti, Zanine e Glênio Bianchetti. 


Formado em arquitetura no Rio de Janeiro, mudou-se para Brasília em 1961 para trabalhar na equipe que projetou o campus da UnB, sob o comando de Oscar Niemeyer e Darcy Ribeiro.


Quando nasceu o primeiro filho, o jovem arquiteto não tinha maiores intimidades com a câmera fotográfica. Mas o pai de primeira viagem viu-se na obrigação de registrar o cotidiano da família que começava a se formar. 


Então, no início, era nada mais do que isso: a fotografia como registro familiar, tema que, no futuro, seria retomado em grande estilo pelo artista já consagrado. Até o dia em que o arquiteto que acompanhava a construção dos primeiros prédios da UnB viu numa loja de materiais de construção uma coleção da revista Popular Photograph, principal publicação mundial sobre o tema. Foi aí que descobriu a fotografia como arte. 


Mais tarde, Athos Bulcão mostrou ao jovem colega um livro com a obra do francês Cartier-Bresson (1908-2004), o mais influente fotógrafo do século 20. Foi amor à primeira vista. Luis Humberto abriu o livro e se encantou com a fotografia de um sujeito empurrando a namorada num balanço, com toda a espontaneidade e a alegria do mundo. Foi aí que descobriu a fotografia como grande arte. 


Apaixonado também pela arquitetura, Luis Humberto viu-se numa encruzilhada. “Tive que escolher. E escolhi a paixão maior: a fotografia”. 


A decisão foi precipitada pela saída da UnB, em 1965, quando se juntou ao grupo de 300 professores e funcionários num pedido de demissão coletiva, em protesto contra a intervenção do regime militar no campus. 


Só voltaria à UnB em 1986, como professor do Departamento de Comunicação, onde criou as disciplinas Análise da Imagem e Políticas Culturais. Decano de extensão e pesquisador da pós-graduação, Luis Humberto recebeu, em 2011, o título de professor emérito.


Logo em seguida à saída da UnB, enviou currículo e portfólio para a editora Abril. Foi contratado, primeiro como freelancer, depois com carteira assinada. Fotografava para diversas publicações da editora, entre elas Claudia e Quatro Rodas, mas foi na Veja que ele fez história.


Cabeças cortadas


Uma das mais conceituadas críticas de fotografia do país, a professora Simonetta Persichetti escreveu: 


“É quase impossível falar em fotojornalismo no Brasil sem citar o papel de Luis Humberto no desenvolvimento dessa linguagem. Tanto do ponto de vista prático – como fotógrafo que registrou momentos importantes de nossa história recente para Veja, IstoÉ ou Jornal de Brasília – como do ponto de vista teórico – ao levar, em 1987, o fotojornalismo para as carteiras escolares e para a discussão acadêmica”.


No entanto, em entrevista à mesma Simonetta Persichetti, Luis Humberto revelou o incômodo do reconhecimento exclusivo como fotojornalista.  


“Sou fotógrafo, e o jornalismo foi uma parte de minha vida como fotógrafo. A fotografia oferece possibilidades infinitas. Tenho um longo ensaio sobre paisagem doméstica, por exemplo, que é casa desabitada, são fragmentos de uma casa, muito diferente da fotografia doméstica onde fotografei minha família. Além disso, tenho um longo trabalho sobre o cerrado. Mas por estes trabalhos as pessoas se interessam menos”, lamentou. 


Se existe um responsável pela fama de Luis Humberto como fotojornalista, esse culpado se chama... Luis Humberto. 


Impossível esquecer a irreverência luis-humbertiana em flagrantes como o do conchavo entre os deputados Eurico Resende e Ulysses Guimarães, enquanto no fundo da cena uma anônima faxineira, a desfocada representante do Brasil real, espana a poeira das cadeiras do plenário. (Reparando bem, por ilusão de ótica, parece que a faxineira passa o espanador... na cabeça do Eurico Resende!)


Fotos Luiz Humberto

O humor com cara de denúncia aparece também no registro de uma cerimônia banal no Palácio do Planalto, em 1977, no qual uma fila de puxa-sacos de paletó e gravata aguarda as bênçãos de uma autoridade qualquer. 


O detalhe é que tanto os puxas-sacos quanto a autoridade tiveram as cabeças sumariamente decepadas pela lente afiada do fotógrafo. Quando alguém lhe pergunta quem são os personagens da foto, Luis Humberto responde com impaciência: “Não sei e não interessa.”


A verdade é que ele sabe quem são os decapitados. Mas a verdade maior é que os nomes e os cargos de fato não interessam ao propósito do fotógrafo, que é o de ridicularizar a liturgia do poder.


 “O poder, seja de que natureza for, é sempre reverenciado, não importa quem seja o ocupante do cargo. Isso me enoja”, diz, revelando em seguida não o mistério das cabeças cortadas, mas o espírito da foto:


“Eu quis mostrar o quanto o poder é falível, ridículo e frágil. Tão frágil que os assessores cuidavam para que as autoridades estivessem bem arrumadas para sair na foto. Pois eu gostava de fotografar justamente o contrário: a desarrumação, para mostrar o ridículo daquela coisa toda.”


Em outra cena de puxa-saquismo explícito, uma cerimônia de beija-mão no Palácio do Planalto, Luis Humberto flagra o instante em que o primeiro da fila se curva tanto diante da figura do então general-presidente, Emílio Garrastazu Médici, que quase beija literalmente a mão do ditador.


O próprio Luis Humberto, aliás, escapou por pouco de uma cerimônia do tipo. Era o último natal do Médici na Presidência e a assessoria avisou que, pela primeira vez, o general iria cumprimentar os jornalistas que cobriam a Presidência. Como naquele tempo até as colunas de mármore do Planalto tinham olhos e ouvidos, nosso rebelde e irreverente fotógrafo viu-se enquadrado na longa fila de cumprimentos.


“A fila andando e eu angustiado, pensando: Não vou apertar a mão desse sujeito, não vou apertar a mão desse sujeito. Mas dizer isso na cara dele, que era uma facínora, seria um grande risco.”


Luis Humberto foi salvo no último instante pela providencial chegada de uma equipe de televisão. Aproveitou a deixa e saiu da fila com a câmera em punho, disparando cliques a torto e a direito, fingindo documentar a equipe que documentava a cerimônia – e deu um jeito de escapar do suplício.


Entre tantos prêmios, títulos, condecorações e reconhecimentos, Luis Humberto exibe mais este: o do fotógrafo que se recusou a apertar a mão do responsável pelo período de mais violenta repressão do regime militar. E sobreviveu para contar história.





Fotógrafo de dois mundos


Luis Humberto é um fotógrafo de dois mundos: o que acontece de sua janela para fora e o que se passa de sua porta para dentro. O primeiro, mais explícito, foi generosa e impiedosamente documentado na série Liturgia do Poder


O segundo mundo, mais sutil, se divide em duas séries. Tempo Veloz retrata, de maneira original, a rotina familiar (a mulher e eterna musa Márcia, os filhos, os cães e os gatos), enquanto Paisagem Doméstica retrata a casa desabitada, ou antes, habitada apenas por coisas e luz e sombra.


Publicado em 2010, o livro Do lado de fora da minha janela Do lado de dentro da minha porta faz um apanhado das várias vertentes da obra de Luis Humberto. No texto de apresentação, o fotógrafo e professor Samuel Salomon Cytrynowicz definiu:


(sobre Tempo Veloz) “Incomum álbum de família, suas fotografias rompem deliberadamente com os códigos, hábitos e condicionamentos desse gênero (…) e saem em busca de uma lúdica aventura que envolve a todos, fotografados e espectadores, em espirituoso jogo sobre nossas identidades. Exercício permanente de amor aos seus e ao fazer fotográfico”.


(sobre Paisagem Doméstica): “Um mergulho onírico na intimidade do cotidiano. Objetos  do dia a dia plenos de humanidade namoram o abstracionismo. (…) A luz natural que invade o espaço íntimo, filtrada por janelas, persianas e cobogós, é a principal atriz: transforma objetos banais em arte.”


O novo projeto, Reforma do Olhar Possível, é uma espécie de retomada da série Paisagem Doméstica. Excetuando as paisagens fugazes que passam pela janela do automóvel que o leva diariamente para sessões de fisioterapia no hospital Sarah Kubistchek, é sobre os objetos inanimados mas plenos de humanidade que Luis Humberto debruça seu olhar, desde que em 2011 começou a sofrer os efeitos de uma doença ainda não totalmente diagnosticada, que ele chama de “buquê de patologias”. 


“No primeiro momento, fiquei muito deprimido. Mas eu sou um cara pra cima, não me acho escolhido por Deus pra sofrer desgraças. Chegou uma hora que eu tinha que voltar às minhas atividades fundamentais: escrever e fotografar. Mas como fotografar? Não tenho mobilidade, não tenho equilíbrio... Eu me propus então a fotografar aquilo que atrai meu olhar, agora que estou num plano diferente daquele de quando eu me movia. E saí descobrindo coisas que não tinha visto, porque antes eu nem olhava.”


Estão lá, (re)descobertos pelo olhar (possível) do mestre, o sinal fechado no meio do caminho, os batons também vermelhos, a vitrine de pernas cortadas vestidas com meias italianas, os ancestrais eternizados em suas molduras ovais, as toalhas abandonadas no banheiro, o cobertor que dorme sobre a cama, o solitário par de óculos pousado no braço do sofá, o diálogo silencioso entre cadeira e mesa... Objetos inanimados ganhando vida graças a sopro divino de luz e solidão. 


Para o fotógrafo Rinaldo Morelli, ex-aluno de Luis Humberto e responsável, juntamente com a fotógrafa Usha Velasco, pela edição das fotos da nova exposição, “o desafio do momento atual [a doença] pode até mesmo passar despercebido, mas agrega valor ao sabermos da perseverança do fotógrafo na busca por melhores ângulos, e também pelo carinho com que aprisiona luzes e sombras.”


Fotos: Bento Viana

A incompetência é adjetivosa


Final feliz: depois de toda a polêmica, a Secretaria de Cultura do DF decidiu que com FAC ou sem FAC a nova exposição de Luis Humberto vai acontecer em 2018, no Museu Nacional, como parte das comemorações pelos 30 anos de inclusão de Brasília na lista de Patrimônio Mundial da Unesco. Palavras do secretário de Cultura, Guilherme Reis, ao blog Olhar Brasília:


“A proposta do recorte de olhar é linda. Luis Humberto é, sim, um caso excepcional, que merece um olhar excepcional.”


Luis Humberto agradece, mas faz questão de registrar a indignação com o episódio.

 

“Estou cansado de ver a incompetência julgando o que não conhece. E os incompetentes são adjetivosos: ‘irrelevante’... Ora, o cara [o anônimo responsável pelo parecer de rejeição] não entende nada de artes visuais, ele não é da área, como pode dizer que uma obra tem ou não tem relevância?”, protesta.


Aos 82 anos de idade e 55 de fotografia, Luis Humberto tem consciência do peso de sua história, mas não quer ser julgado pelo currículo, muito menos pelo estado de saúde. 


“O que está em julgamento é a qualidade da obra que apresentei ao FAC, e ela devia ter sido julgada por quem é capaz de entendê-la. E não tem essa história de ‘Ah, o velhinho, coitadinho, numa cadeira de rodas’. Até porque a cadeira de rodas está aqui, mas o velhinho eu não sei por onde anda”, ironiza.


Que ninguém espere de Luis Humberto o menor sinal de autopiedade. O peculiar senso de humor transparece inclusive na hora de descrever a dificuldade que enfrenta para prosseguir no exercício de sua paixão: 


“Pra trazer a câmera fotográfica do quarto pra sala eu penso três vezes, requisito dois assistentes e chamo o Corpo de Bombeiros”, brinca.


Quando a velhice não é o fim


No texto de apresentação do projeto encaminhado ao FAC, Luis Humberto escreveu: 

 

“Não penso a velhice como um espaço de decadência e fim, mas como um lugar de sabedoria e resignação sem acomodação, um momento de atividade contraditoriamente serena e útil para os que vêm atrás.”


Sendo assim, no que depender de Luis Humberto, a aposentadoria ainda está longe.


 “Tem gente que se surpreende e pergunta: Mas você ainda fotografa? E eu respondo: Mas é claro que eu fotografo. Eu estou vivo.”



 
 
 

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