Brincantes do cerrado
- joserezendejr
- 25 de fev.
- 11 min de leitura
Atualizado: 18 de abr.
(revista Traços, nº 44 / janeiro-fevereiro de 2021)
Por José Rezende Jr. e richard de assis
Fotos: Thaís Mallon
Inventor de uma tradição popular genuinamente candanga, o grupo Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro celebra 16 anos de vida – com a bênção de criaturas encantadas que a gente nem sabia que existiam

Muito antes de fundador e capitão do Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro, o pernambucano Tico Magalhães era um jovem brincante de maracatu que um dia veio morar em Brasília. E que, numa viagem à Chapada dos Veadeiros, apaixonou-se pelo cerrado, de onde extraiu uma mitologia toda própria, contada em páginas de livro e cantada ao toque dos tambores do grupo de cultura popular que criaria tempo depois.
Uma mitologia genuinamente candanga, povoada pelo Calango Voador (filho do Sol e da Terra, que ganhou asas para escapar da terrível Tromba d'Água), as Três Marias (Maria Invertida, Maria do Contrário e Maria Virada), Luzbelo (o dono dos sonhos) e tantas outras criaturas encantadas que nós, céticos candangos, nem sabíamos que existiam.
Assombros
O primeiro assombro do pernambucano com o cerrado foram as estrelas da vila de São Jorge, tão brilhantes e tão próximas de quase se pegar com a mão, feito vagalumes. E vieram outros assombros: a caliandra e as demais flores que teimam em enfeitar a seca, e os bichos, todos os bichos, dos grandes e dos pequenos, seja onça, seja calango.
E vieram então as cachoeiras, assombro maior desse recifense que era, até então, uma criatura marinha. Criado na beira da praia, Tico Magalhães vivia de costas para tudo que não fosse o mar. Mas quando banhado nas águas doces e frias das cachoeiras, teve a certeza de que encontrara seu novo lugar no mundo.
E entendeu que não era possível que, por baixo do mundo de puro encantamento do cerrado, não existisse outro mundo, um reino mágico e invisível que só se apresentava aos olhos de quem quisesse ver.
Esse outro mundo estava ali, pedindo para ser visto e escutado. E ele tomou para si a missão de ver e escutar. E assumiu assim a missão de inventar uma nova tradição, para celebrar o cerrado e as criaturas visíveis e invisíveis que nele habitam.
"Foi uma conversa minha com o cerrado, mas as histórias já estavam por aí, poderiam ter sido ouvidas por qualquer outra pessoa. Essa mitologia veio naturalmente, não foi algo tipo: 'Eu vou parar pra escrever'. Não, os mitos vieram muito naturalmente. Não sinto que tenha sido um trabalho individual. São memórias que a gente carrega, memórias coletivas, ancestralidades, que reverberaram nos integrantes do grupo", conta.
Tico começou a escrever a mitologia do cerrado desde lááá do começo, com a morte do Nada e o nascimento do Tudo. Depois vieram a Eternidade, o Tempo, o Som, o Rio, a Mata, a Caliandra e o Calango Voador.
E veio também Laiá, filha de um cantar da Mata. E de um sonho de Laiá nasceu Seu Estrelo, cuja gestação se deu dentro de uma Barriguda, essa árvore que a gente vê pelo DF afora sem imaginar que em seu ventre talvez existam outras criaturas encantadas.
Seu Estrelo nasceu com o axé de cantar e criar, e com seu canto fez nascer todos os animais do cerrado, e com seu toque do tambor, no pulso do samba pisado, fez nascer um grupo chamado Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro.
O samba pisado
Quando ainda recém-chegado ao cerrado, Tico bem que tentou ministrar oficinas de maracatu. Até convencer, primeiro a si mesmo, depois aos alunos, que era preciso inventar uma brincadeira diferente, própria do cerrado e não da zona da mata pernambucana. Os personagens, ou as "figuras", já existiam em seu caderno, em forma de palavras, só precisavam ganhar formas e vestimentas.
Faltava também um pulso, uma batida de tambor capaz de gerar a energia que trouxesse o Calango Voador, Laiá, o próprio Seu Estrelo e demais figuras encantadas para este nosso mundo físico. E assim nasceu o samba pisado, marca registrada do grupo.
No ritmo, o samba pisado está mais ligado ao maracatu rural, pela velocidade da batida. Mas, ao mesmo tempo, agrega instrumentos característicos de outras tradições populares, a exemplo da alfaia, do maracatu nação, que é um tambor grande de som mais grave; o agbê, uma cabaça tradicionalmente usada no afoxé; e o gonguê, presente nos maracatus pernambucanos.
A célula principal do som é a batida dos pés dos brincantes do cavalo marinho. Além disso, Seu Estrelo introduziu melodia no samba, acrescentando o canto à pulsada rápida dos tambores.
A mistura deu certo. Quando perguntado o que a brincadeira do Seu Estrelo traz das culturas africana e indígena, além do som e da estética, Tico evoca justamente a mistura:
"O que a gente traz do africano e indígena é o princípio da coexistência. O que eu consigo, através de outra brincadeira, somar à minha brincadeira e criar outra brincadeira? Não é aquela coisa da cultura europeia, colonial, tipo: 'Eu preciso exterminar a outra cultura, porque a minha cultura é melhor'. Não. É o contrário: 'O que nós podemos somar?'".
"O Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro só existe porque existe o cerrado. É a partir do cerrado que ele surge. É importante sonhar a partir da gente."
(Tico Magalhães)
O que é seu?
No começo, os alunos das oficinas de Tico perguntavam por que inventar uma brincadeira nova, em vez de brincarem as que já existiam, a exemplo dos dois maracatus de Pernambuco, o rural e o nação, além do cavalo marinho e da ciranda, por exemplo.
"Porque uma coisa que a tradição popular me ensinou foi o seguinte: 'Isto aqui é meu, e eu brinco com ele. O que é seu?'. Daí eu pensei: O que é daqui, do cerrado? O que é a partir daqui? Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro só existe porque existe o cerrado. É a partir do cerrado que ele surge. É importante sonhar a partir da gente. Não tem sentido fazer maracatu aqui. O maracatu tá lá em Pernambuco. O cavalo marinho também tá lá. Ele vai falar dos personagens daquele lugar, como o Mané do Motor, que é chamado pra consertar o motor do engenho [de cana de açúcar]. O Mané do Motor não tem sentido existir aqui."
"O Seu Estrelo carrega tudo que eu me tornei ao longo dos anos e tudo em que acredito. O Seu Estrelo é meu fundamento."
(Alê Rosa)
Veteranos e calouros brincantes
Alê Rosa é uma das integrantes mais antigas do Seu Estrelo. A produtora cultural entrou para o grupo em 2006, numa época em que a brincadeira ainda se firmava e a cidade resistia a ter um folclore pra chamar de seu.
"O Seu Estrelo foi e continua sendo uma escola de cultura popular, um multiplicador de pessoas e de talentos. Nunca tinha tido contato com essas manifestações, nem sabia o que era maracatu direito [risos]. Tudo o que aprendi sobre isso foi aqui – inclusive em relação aos instrumentos que o samba pisado toca. Tudo foi aqui dentro", afirma a percussionista.
Passado tanto tempo desde que chegou ao grupo, ver o mito alçar voos – tão altos quanto a imaginação de quem se propõe a ver e escutar além – é motivo de emoção e orgulho.
"Não imaginava que chegaríamos no lugar que estamos hoje. Isso só foi possível porque trabalhamos duro e, ao mesmo tempo, brincamos também. É uma brincadeira, mas que carrega muito sentimento, seriedade e fundamento", explica. "Me sinto realizada porque as pessoas estão agregando valor ao que fazemos."
Diferente de Alê, que testemunhou a gênese e a evolução da brincadeira ao longo dos anos, Thiago Gama é um dos integrantes mais recentes. A primeira vez que o jovem estudante de música ouviu falar do grupo foi há alguns anos, no vestibular, quando o Seu Estrelo passou a aparecer nas provas de quem sonha em entrar em uma universidade pública.
Era a primeira vez que uma geração brasiliense tinha um folclore que não fosse de outros lugares, nem parecesse demasiadamente distante da própria realidade da cidade.
"Eu já tinha ouvido falar do grupo porque tinha sido obra do meu vestibular, mas só o conheci pra valer quando alguns amigos me trouxeram para um show aqui, na sede. Achei a coisa mais inacreditável que eu já vi", conta com espanto.
O mito do Calango Voador fisgou, de cara, o coração do músico – primeiro, pelo som vibrante e reverente do samba pisado; depois, pelas figuras míticas da fábula, todas tão peculiares, coloridas e cheias de mistério.
"Passei a vir para todos os shows, comecei a fazer as oficinas e fui conhecendo a galera. Uma vez, uma menina instrumentista do grupo se mudou, e eles já tinham um show marcado, então me chamaram pra tocar. Eu meio que caí de paraquedas", ri.
Thiago soma ao batuque da brincadeira tocando gonguê, um instrumento semelhante ao agogô que remete ao elemento Ar. Para ele, o grupo é um espelho que ajuda a capital a se reconhecer nela mesma.
"O Seu Estrelo foi minha primeira experiência de cultura popular. Senti que era turista no início; não tinha preconceito, só desconhecia. Para mim, o mais legal é o lance de se identificar e pensar; 'Isso aqui é nosso'", reflete.
"Para mim, o mais legal é o lance de se identificar com o Seu Estrelo e pensar 'isso aqui é nosso'."
(Thiago Gama)
Homo Cerratensis
Além de ver e ouvir o cerrado, Tico mergulhou na obra de Paulo Bertran. O historiador goiano, segundo ele, está para o cerrado da mesma forma que Josué de Castro – autor de Geografia da Fome e inspiração do movimento mangue beat de Chico Science – está para Pernambuco.
Autor do clássico História da terra e do homem no Planalto Central, amante das terras, gentes, lendas e mitos do cerrado, Paulo Bertran inventou o termo Homo Cerratensis, para se referir aos povos que viveram aqui. Sua obra mostra que a vida neste lugar do mundo onde hoje estamos começou muito antes da chegada de Juscelino Kubistchek com seus tratores.
"O cerrado é uma terra tão antiga... Quem é daqui tem que ler Paulo Bertran, pra ver quantos povos estiveram aqui antes, e pra entender o que é essa encruzilhada, essa junção de gentes. Esse lugar tão especial, que une a Mata Atlântica ao Pantanal e à Amazônia", afirma Tico.
A escrita é uma das principais funções de Tico no grupo. Sim, porque os mitos não estão todos prontos, o cerrado não se cansa de gestar novas figuras que precisam saltar do mundo mítico para a realidade brincante do Seu Estrelo.
"Quando chega uma figura nova, os figureiros do grupo vão descobrir o corpo, a fala, o figurino, vão descobrir o batuque dessa figura, o ritmo pra chamá-la pra brincadeira. É um processo muito coletivo", explica o capitão.
Rafael Ops concorda. O ator e produtor cultural é um dos encarregados de convidar essas figuras para a roda, e define a tarefa como "um exercício de generosidade de ambos os lados''. Ele explica a razão:
"É generoso por parte das figuras, que vêm brincar com a gente, e para as recebermos precisamos ser tão generosos quanto elas. É uma relação de cuidado e escuta", afirma.
Goiano radicado em Brasília, Ops ficou feliz e surpreso quando descobriu que a cidade inventada no meio do Planalto Central também tinha uma tradição própria.
"Tem uma frase que diz que 'a flor que a gente mais precisa é a que nasce no nosso jardim'. Foi muito forte e revelador quando conheci o Seu Estrelo, pois era justamente a flor da qual eu precisava em Brasília. É uma tradição inventada para uma cidade inventada, que desperta as pessoas para que elas enxerguem o cerrado com mais poesia", define o produtor.
"É uma tradição inventada para uma cidade inventada."
(Rafael Ops)
Cada um tem o seu sagrado
Os olhos devotos de Tainá Frota se perdem em encanto enquanto ela encara as formosas e azuladas vestimentas de Sinhá Laiá a descansar no canto da sala. No mito, todos os pássaros do cerrado foram criados pelo canto cheio de estrelas de Laiá, que foi transformada em uma linda sereia depois de se apaixonar pelo Rio.
"Ela é a mãe do Seu Estrelo. Vejo ela como uma grande rainha. Minha relação com essa figura, em específico, passa por um lugar de honra, beleza e reverência", revela a atriz e produtora cultural, frequentemente responsável por trazer a figura da sereia para as rodas.
Quando chegou ao grupo, Tainá percebeu que o ofício dos figureiros tinha muito a ver com aquilo que já fazia no teatro. Mas havia algo de diferente.
"Tem um quê de misticismo, mas não é em um lugar etéreo. Se a gente não defuma a roda antes da apresentação, é diferente. Se a gente não tem um tipo de reverência com as figuras, muda também. Cada um tem o seu sagrado aqui dentro. A arte e a espiritualidade coexistem. Uma coisa não termina para a outra começar", elabora.
"Cada um tem o seu sagrado aqui dentro. A arte e a espiritualidade coexistem. Uma coisa não termina para a outra começar"
(Tainá Frota)
Resistir é tradição
Por conta da pandemia, o grupo viu-se impedido de viajar pelo país e de realizar as três festas anuais, dedicadas a Laiá (em abril), ao Seu Estrelo (junho) e ao Calango Voador (setembro), que chegam a reunir até 3 mil pessoas em sua sede, o Centro Tradicional de Invenção Cultural.
O espaço também ficava lotado por causa das oficinas realizadas pelo grupo: de dança popular, de percussão e do chamado teatro de terreiro, expressão que o pernambucano Mestre Salustiano, padrinho do grupo, usava para chamar o folguedo cênico do cavalo marinho. Agora as oficinas são virtuais, juntando gente de todo canto do país para brincar e contar histórias.
Em 2020, Seu Estrelo lançou o segundo CD, Exu Monumental – cujo título homenageia o poeta TT Catalão –, que conta com a participação especial de Ellen Oléria, dos instrumentistas Marcos Moraes e Alencar Campos e dos músicos pernambucanos Manoel Roberto e Mestre Nico.
Publicou também o livro O Mito do Calango Voador e Outras Histórias do Cerrado, escrito e ilustrado pelo próprio Tico. O CD e o livro foram as brincadeiras possíveis num ano pouco propício às brincadeiras.
"Se o Seu Estrelo tem algum mérito é o de estar há 16 anos brincando. E isso não é fácil não. Fazer festa de cultura popular no meio dessa cidade, com todo o preconceito que existe, é um marco ", afirma Tico.
Tainá considera que a discriminação da qual o grupo é alvo nasce também da ignorância, e que perpetuar a brincadeira é um ato político.
"Muitas pessoas vêm ver a roda e percebem que não tem nada a ver com a imagem que elas criaram por ter a palavra 'terreiro' no nome do grupo. Aí, a gente também está falando do preconceito a símbolos que remetem à matriz africana. O racismo e a intolerância existem em muitas esferas", avalia.
Além da pandemia e do preconceito, o grupo enfrenta a permanente ameaça de despejo de sua sede. Situada na Vila Cobra Coral, ocupação cravada há mais de 40 anos no Setor de Embaixadas Sul, foi lá no espaço cedido por seu Luiz, dono do terreiro Pai Joaquim de Aruanda, que o mito do Calango Voador decidiu florescer e fazer morada.
A casinha do Seu Estrelo viu toda uma comunidade crescer ao seu redor nos últimos 16 anos. Com o tempo, foram chegando outros coletivos, como o Circo Inventado, a Cia. Circênicos e o Espaço Casa da Árvore.
E logo o lugar também ficou conhecido como Vila Cultural, mais um dos importantes redutos de fomento e valorização da cultura popular espalhados pela cidade.
Pelo fato do loteamento, em constante expansão, ainda não ser regularizado junto ao Governo do Distrito Federal, Tico conta que o grupo enfrenta grandes dificuldades para se manter no espaço. Todo ano, o terreiro do Seu Estrelo é alvo constante de notificações e intimações demolitórias por parte dos órgãos competentes, com a presença ameaçadora de policiais militares e tratores.
Enquanto isso, segue mantendo diálogo com a Secretaria de Cultura para que o longevo Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro se torne patrimônio cultural e imaterial do DF. De forma que o espaço que acolhe as oficinas, os ensaios e as grandes festas não corra mais risco de ser fechado, deixando a cidade órfã de uma manifestação cultural que só existe aqui e em nenhum outro lugar do planeta.
"Não é em qualquer lugar que a gente toca tambor. Não é em qualquer lugar que essa energia gira. Se a gente perder o espaço, provavelmente a cidade também perderá a brincadeira", alerta.
O futuro é tão antigo quanto o passado
Se tradição se constrói com o tempo, e é dela que se deriva boa parte das manifestações de cultura popular que dão cara, cor e tom a um povo, como fica então a tradição de cidades recentes como Brasília, que ainda não possuem identidades culturais sólidas, nem uma extensa história à qual recorrer?
Tico responde:
"A tradição carrega essa memória, esse fio de ancestralidade. Mas, ela [a tradição] também tem essa preocupação perene com o futuro, estando mais ligada a ele que ao passado. Na tradição, eu quero manter algo. É algo que eu amarro agora pensando no amanhã. Quando as Três Marias, figuras que nasceram antes do Tempo, chegam na roda, elas falam para o capitão: 'Nasci antes do Tempo. Vi ele chegar aqui e se fazer presente; sem nenhum passado, só com o futuro pela frente. O futuro é tão antigo quanto o passado.' Nós [de Brasília] não precisamos falar apenas sobre o passado. A gente pode falar de tradição mirando o futuro."
Só com o futuro pela frente, o Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro segue povoando o cerrado e o imaginário candango de magia, lendas e encantos, ajudando a construir a tradição e as milhões de faces de uma cidade que, um dia, foi apenas sonho e utopia.
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