Hoje tem espetáculo!
- joserezendejr
- 20 de fev.
- 6 min de leitura
Atualizado: 18 de abr.
(revista Traços, nº 8 / junho de 2016)
Por José Rezende Jr.
Fotos Bento Viana
Um jovem casal de palhaços a bordo de um velho fusca: a Cia. da Sorte espalha o riso e a reflexão pelo Brasil afora.

Esta é uma história de amor. De amor à arte e de amor-amor. Começa assim:
Um dia, para provar à família que era capaz de viver da sua arte, Rafael montou na bicicleta e pedalou 6 mil km, de São Paulo até Itapipoca, no Ceará, fazendo graça e arrancando risos pelos fins de mundo afora. No meio do caminho tinha Brasília, e tinha Letícia. Rafael era palhaço profissional. Letícia era arquiteta.
Rafael andava de monociclo e perna de pau, jogava malabares de lá pra cá e de cá pra lá, tirava coelho de pelúcia da cartola, fazia o público morrer de rir. Letícia fazia projetos arquitetônicos, amava todas as formas de arte, mas seus dotes artísticos limitavam-se a tocar pandeiro e a declamar o Soneto da Fidelidade, de Vinícius de Moraes:
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
Apesar das diferenças, Rafael e Letícia se encontraram, no amor e na arte. Ele completou ela e vice-versa, que nem feijão com arroz e eduardo e mônica. Letícia Marins virou a palhaça Dona Lelê e Rafael Trevo continuou a ser o palhaço Trevolino. Juntos, eles saem a bordo do velho fusca 64 (o audaz Ventura Banguela da Sorte) rindo seu riso e espalhando outros risos pelo Brasil afora, para contentamento de um público tantas vezes acostumado a derramar o pranto.

Um palhaço aí pelo Brasil
Rafael tinha R$ 150 no bolso quando saiu de casa, no dia 31 de dezembro de 2012, rumo a Itapipoca (Ceará), onde moravam os bisavós, dona Tecla e sêo Maneco. O plano era simples: pedalar no mínimo 80 km e gastar no máximo R$ 15 por dia.
Depois de um ano inteiro dormindo em posto de gasolina, fazendo malabarismo nos semáforos das cidades grandes e armando o circo de um homem só pelas praças de cidadezinhas remotas, passando o chapéu e conhecendo diferentes lugares, histórias e gentes, Rafael finalmente chegou a Itapipoca, em dezembro de 2013. O bisavô, sêo Maneco, não deu conta de esperar: morreu quando o Rafael pedalava pela Bahia. Mas dona Tecla estava lá, firme e forte às vésperas dos 90 anos, para receber o bisneto de braços abertos.
Finda a odisseia, Rafael embarcou de avião para São Paulo, prometendo voltar no ano seguinte, mas não de bicicleta nem de ônibus nem de avião: dessa vez, no fusca ainda sem nome e sem serventia que envelhecia na casa dos pais, em São Paulo. Rafael voltaria sim, mas não mais como Rafael, o artista de rua errante e solitário, e sim na pele pintada do palhaço Trevolino – ainda errante, mas agora de mãos dadas com a palhaça Dona Lelê, na futura trupe Cia. da Sorte.
A lei universal do amor
Rafael e Letícia se encontraram pela primeira vez quando ele, de passagem por Brasília, rumo ao Ceará, apresentou seu número de mágico-charlatão na Vila Cultural da 813 Sul. Letícia, que estava na plateia, gostou primeiro do palhaço de cara pintada com sua mágica de araque; depois, gostou do moço de cara limpa que puxou conversa ao fim do espetáculo, e demorou alguns minutos para descobrir que os dois eram a mesma pessoa.
O amor tinha prazo de validade. Pela lei universal dos amores de verão, embora fosse quase inverno no Planalto Central, devia durar só o tempo em que a bicicleta de Rafael permanecesse ancorada em Brasília. Mas os dois se gostaram tanto que passaram a se falar quase todo dia pelo telefone. Até que Letícia tirou 15 dias de folga, pegou um avião e foi ao encontro de Rafael em João Pessoa.
Rafael adorou a visita, mas levava tão a sério a profissão de palhaço que não podia abandonar o expediente nos semáforos e nas praças para dar a Letícia a atenção que ela merecia. A solução foi promover ao cargo provisório de artista de rua a arquiteta que admirava a coragem dos artistas de rua mas achava que jamais daria conta de tamanha ousadia.
Logo-logo, lá estava o casal passando o chapéu nos semáforos de João Pessoa, ele fazendo malabarismo, ela tocando pandeiro, e os dois depois a bordo dos ônibus urbanos, ele fazendo graça, ela encantando motoristas, cobradores e passageiros com O Soneto da Fidelidade.
Ao término da aventura, Letícia voltou para Brasília e Rafael seguiu viagem rumo a Itapipoca. Mas os dois já não era os mesmos. Em suas respectivas bagagens, cada um levava a exata metade de um sonho.
O nascimento de Dona Lelê
As duas metades viraram um sonho inteiro, e o sonho tomou forma e recebeu o nome de Cia. da Sorte. O primeiro passo foi a campanha de financiamento colaborativo, via redes sociais, para botar na estrada o projeto Semente da Sorte, que consistia em levar circo e cinema a cidades, vilarejos, comunidades e assentamentos, a maioria sem circo e sem cinema.
O passo seguinte foi botar as mãos na massa – e na graxa, e na máquina de costura, e no notebook. Além de limpar todos os dias a oficina do Carlinhos, em São Paulo, para baratear o conserto do fusca, Rafael assumiu o posto de aprendiz de mecânico, para quebrar o galho em eventuais percalços durante a viagem. Além de costurar as cortinas e a tela de cinema improvisada, Letícia projetou no computador as estruturas metálicas removíveis que transformariam o fusca num misto de circo, cinema e casa.
A Cia. da Sorte zarpou de São Paulo em fevereiro de 2014, rumo ao Nordeste. Rafael era já o Trevolino, mas Letícia ainda era só Letícia. Até que na segunda parada da viagem, na periferia de Ribeirão Preto, Dona Lelê veio ao mundo, com frio na barriga e figurino garimpado nos brechós da cidade.
Nove meses depois, em novembro daquele ano, a Cia. da Sorte aportou em Natal (Rio Grande do Norte). Hora de voltar para casa, mesmo que àquela altura a casa fosse a estrada e estivesse o tempo todo com eles. Juntando a ida e a volta, foram 15 mil km percorridos, com apresentações de circo, intervenções artísticas, oficinas e exibições de filmes e vídeos sobre temas como meio ambiente e violência contra a mulher, nas periferias das grandes cidades ou em comunidades quilombolas e assentamentos da reforma agrária quase isolados de tudo.
Outra vez na estrada
O fim do projeto Plantando Semente foi só o começo. Logo, a trupe estaria de novo na estrada, arrancando risos até em lugares soterrados pelo pranto, como a região de Mariana (MG), vítima do rompimento da barragem da mineradora Samarco.
Temporariamente ancorada em Brasília, numa chácara no Lago Oeste, a Cia. da Sorte arquiteta novas aventuras. Mas antes é preciso reformar o velho fusca cansado de guerra.
Depois, estão previstas apresentações em cinco quebradas do DF (Varjão, Estrutural, São Sebastião, Paranoá e Planaltina), com apoio de Fundo de Apoio à Cultura (FAC). É a primeira vez que a companhia, até então exclusivamente movida à energia do chapéu, conta com um patrocínio oficial. No final do ano tem mais: ao lado de outras cinco trupes, a Cia. da Sorte integra a Caravana Circo Tapa-Beco, cujo destino é visitar cinco cidades históricas de Goiás, a convite do governo do estado.
Em seguida, de novo por conta própria e do chapéu alheio, a companhia sai em turnê ao longo do Rio Doce, partindo de Mariana (MG) e desembocando no mar, refazendo o itinerário da lama, mas levando o riso em vez da dor.
O mesmo brilho nos olhos
O município Luís Eduardo Magalhães, na Bahia, tem uma linha divisória, meio imaginária, meio concreta, conhecida como Faixa de Gaza. De um lado, a parte muito rica da cidade. Do outro, a parte muito pobre.
A Cia. da Sorte apresentou-se num dia no lado rico; no outro, no lado pobre. Os dois lados riram igual. A diferença, muito sutil, manifestou-se antes do espetáculo: as crianças do lado rico aguardavam em silêncio a entrada em cena de Trevolino e Dona Lelê, ansiosas, mas com respeito e admiração; as do lado pobre, impacientes, exigiam a presença imediata da dupla. É que umas tinham tudo; outras não tinham nada – e o circo para eles era tudo.
“Mas, depois, os olhinhos brilharam igual”, lembra Letícia.

A vida cabe num fusca
Mas o que querem, afinal, Letícia e Rafael? O que faz valer o sacrifício de viajar de sol a chuva, respirando pó de asfalto e poeira de estrada, espremidos num fusca, entre roupas e figurinos, cenários e utensílios domésticos?
Trevolino:
“O que eu quero é conhecer e me comunicar com o outro, e que a consequência desse encontro seja o riso. E que o riso não seja só um riso, mas também a reflexão sobre a vida. Passamos o chapéu, mas nossa recompensa é o riso, é ouvir alguém dizer que durante uma hora todos os seus problemas desapareceram, é saber que despertamos em alguém uma coragem do tipo: Se esses malucos viajam pelo país afora num fusquinha que é um circo, porque eu também não posso seguir o meu sonho?”
Dona Lelê:
“Ser palhaça mudou a visão que eu tinha sobre o meu papel no mundo. É muito legal gerar o riso, e mais legal ainda é conhecer pessoas, entrar em contato direto com as emoções dessas pessoas. Somos itinerantes, viajamos por um sonho, e o nosso trabalho é construir esse sonho. Aprendemos a viver com simplicidade. Tudo o que tem realmente valor cabe num fusca.”
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