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Jornada de heróis e heroínas

Atualizado: 18 de abr.

(revista Traços, nº 39 / maio de 2020)


Por José Rezende Jr.

Fotos: Divulgação


Bom dia pra quem está de dia, boa noite pra quem está de noite. Meu nome é José Rezende Jr. Sou escritor e jornalista, mas hoje estou aqui no papel de jornalista. Vim contar uma história, e o problema é que a história não pode passar de dez minutos. Estou tranquilo, contar histórias não é problema pra mim. 


 

Revista Traços nº 39

As pessoas em geral ficam tensas na hora de subir no palco, por isso há toda uma preparação nos bastidores, o Daniel inclusive (depois eu conto quem é o Daniel) usava técnicas de respiração, preparação vocal, às vezes rolava até uma yoga do riso, quem ia chegando no teatro e ouvia aquelas gargalhadas não entendia nada. 


Mas como já disse, eu estou tranquilo, sou acostumado a contar histórias, passei dois terços da minha vida ouvindo e contando histórias. O problema é que eu só tenho dez minutos, e as histórias que as pessoas me contam e depois eu conto para outras pessoas têm muito mais que dez minutos, algumas têm horas a fio, daí depois eu tenho que escolher as partes mais atraentes para o leitor, mantendo a fidelidade ao personagem que me contou a história, e fazer caber num determinado número de páginas da revista. 


Então eu já aviso que há grandes chances de estourar o tempo, e essa será a minha primeira violação às regras do Ossobuco. A outra violação, mais grave ainda, é que eu deveria contar uma história sobre mim, algum acontecimento que mudou a minha vida, mas a história que eu vou contar não é sobre mim, é sobre uns amigos idealistas que, se não chegaram a mudar a vida de Brasília, pelo menos ajudaram a torná-la mais interessante. A história é a seguinte:


Era uma vez uma turma de amigos idealistas insatisfeitos com a profissão (a maioria de áreas ligadas à publicidade). Talvez “insatisfeitos” não seja o termo exato. Na verdade, eles sentiam que podiam fazer bem mais do que faziam nos seus respectivos empregos. 


Eles costumavam assistir às palestras que aconteciam na cidade, mas estavam insatisfeitos (e aí, sim, o termo é exato) com os palestrantes que, na maioria das vezes, eram importados de São Paulo, como se Brasília não tivesse gente interessante e cheia de histórias pra contar. E em vez de contar histórias, a maioria desses palestrantes importados queria mesmo era falar da sua empresa ou do seu projeto. Na maioria das vezes era – como costumam dizer os amigos idealistas – “só jabá”, ou seja, uma tentativa de vender o peixe.


E esses amigos queriam fazer algo diferente, com a cara de Brasília. E se encontraram então no Bar do Amigão, na Asa Sul, pra trocar ideias. E foi lá, em novembro de 2010, que começou a nascer o Ossobuco, idealizado pelo estrategista criativo Thum Thompson e pelo designer Daniel Vieira Souza, com a adesão imediata do programador Leonardo Ferreira. 


Aí vocês perguntam: Mas por que o nome Ossobuco? Alguma coisa a ver com a culinária? Nada a ver, embora histórias relacionadas à culinária sejam muito bem-vindas no Ossobuco, aliás, qualquer história, sobre qualquer tema, é muito bem-vinda no Ossobuco, e essa é uma das características mais bacanas do projeto. Então por que o nome?


Porque naquele almoço, no Bar do Amigão, o prato que os amigos idealistas comeram foi – adivinhem! – ossobuco. Só por isso? Sim, a princípio foi só porque eles comeram ossobuco. Mas logo em seguida trataram de conceituar a coisa (publicitários, lembram?), e ficou Ossobuco porque ossobuco é uma carne barata, de segunda (e eles queriam que o evento acontecesse numa segunda-feira), e, portanto, acessível a todos (e eles faziam questão que o evento fosse gratuito). 


Vocês não imaginam o quanto é doloroso para um vegano (sim, eu sou vegano) discorrer sobre isso, mas vamos lá: pra quem não sabe, ossobuco é o osso da canela do boi, e no interior dele está o tutano, que as pessoas carnívoras chupam (e eles queriam que o conteúdo das palestras, como o tutano, fosse sugado, absorvido, digerido pela plateia). E pronto, estava pronto o slogan do Ossobuco: “Mais tutano em sua vida”. 


Uma das principais fontes de inspiração do projeto foi o TED Talks, o suprassumo dos eventos de palestras no mundo. Mas eles queriam algo diferente, mais de acordo com suas crenças. 



O Thum explica que no TED o palestrante é sempre alguém muito foda, falando pra uma galera também muito foda e que teve condições de pagar ou que foi convidada pra estar ali recebendo aquele conhecimento.  


E a filosofia do Ossobuco, o Thum faz questão de frisar, sempre foi a de que qualquer um pode contar uma história. Ele costuma dizer que o Ossobuco não tem hierarquia: é de qualquer um pra todo mundo.


Bom, eles já tinham o nome, o conceito, o slogan e até a marca: um ossobuco estilizado. Só faltava o principal: a coisa em si. Decidiram então fazer um evento-teste na casa dos pais do Leandro, no Lago Norte. Um churrasco entre amigos, a R$ 50 por cabeça, a título de colaboração para a carne e a cerveja. E foi a única vez, em dez anos de história, que o Ossobuco cobrou “ingresso”. 


Apareceram cerca de 40 convidados, a primeira plateia da edição zero do Ossobuco. Cada um dos três idealizadores palestrou sobre um tema: Daniel, sobre a necessidade de se aprender a escutar o outro; Thum, sobre as vantagens do sono polifásico, que consiste em distribuir o sono em pequenas porções ao longo do dia, em vez de oito horas durante a noite; e Leandro, sobre a inteligência da colmeia, e como ela se relaciona com a internet. 


A psicóloga Maria Eugênia fechou a programação do evento-teste palestrando sobre o tema Todo mundo conversa. Mas ninguém conversou durante a fala da psicóloga convidada, nem durante as apresentações dos três amigos. E o melhor de tudo: nas duas horas seguintes, churrasco já servido, as conversas – todas interessantíssimas – giravam em torno do conteúdo das palestras. 


Era tudo que os três amigos queriam. Ali ficou provado que o projeto poderia dar certo, e foi confirmado o formato: quatro palestras por noite, cada uma com dez minutos de duração. Por falar nisso, tô preocupado com o meu tempo. Já vai dar dez minutos? 


O passo seguinte foi escolher o local. Primeiro, o teatro do Brasília Shopping, com capacidade para 100 pessoas. As primeiras sessões, todas lotadas, forçaram a mudança para o teatro da Livraria Cultura, no shopping Iguatemi, com capacidade para 250 pessoas. Lotou também, e o Ossobuco mudou-se então para o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), onde está até hoje. Ou melhor: onde estava até ontem, antes do coronavírus. Agora, e enquanto durar a pandemia, o evento acontece em forma de lives, mas isso eu conto depois, primeiro eu quero voltar um pouco no tempo:


O projeto ia bem, mas faltava alguma coisa. O problema era a qualidade irregular das palestras: umas muito boas, outras nem tanto. Não que os palestrantes convidados não tivessem tutano, conteúdo. Tinham, e muito, mas nem todos dominavam a arte da performance no palco. Além disso, no primeiro momento, os palestrantes eram amigos ou amigos dos amigos dos organizadores. Era preciso sair da bolha, buscar a diversidade, que seria uma das marcas registradas do Ossobuco. 


Primeira providência: abrir inscrição pra quem quisesse contar a sua história. E foi assim que muitos brasilienses anônimos que estavam na plateia passaram para a ribalta. Segunda providência: ajudar o candidato a palestrante a estruturar a sua história, torná-la mais atraente para o público. Nada de “a minha empresa isso, o meu projeto aquilo”, mesmo que a empresa e o projeto fossem muito legais. Nada de jabá, lembram? Pois é. O que interessava, e vai interessar para sempre, são as histórias humanas.


Mas como treinar os candidatos a palestrantes? O Daniel assumiu a tarefa, que ele me disse ser a parte mais interessante do projeto: ouvir com antecedência o que a pessoa tem para contar, descobrir junto com ela qual é, de verdade, a história dela, e ajudá-la a estruturar a narrativa, além de cuidar da preparação nos bastidores, no dia da palestra, valendo até mesmo a yoga do riso. Sim, ele me disse que até pessoas experimentes ficam nervosas na hora.


Daniel encontrou a melhor forma de treinar os palestrantes usando uma ferramenta ou metodologia chamada A Jornada do Herói, que é extraída dos estudos do mitologista, escritor, conferencista e professor universitário norte-americano Joseph Campbell. Em seu livro O Herói de Mil Faces, Campbell desenvolveu a Teoria da jornada do herói arquetípico, que consiste no seguinte: 

Em diferentes épocas, desde antes mesmo do surgimento da escrita, diferentes povos, das mais diferentes culturas, contaram e ainda contam uma história bem parecida: um herói, que ainda não é um herói e sim uma pessoa comum, vive tranquilamente em seu mundo, que nós podemos aqui atualizar chamando de zona de conforto. De repente, eis que surge uma grave ameaça externa, e o nosso futuro herói é obrigado a sair da sua zona de conforto para enfrentar o perigo e salvar o mundo em que vive. 

Nessa longa jornada por uma terra desconhecida, ele precisa enfrentar e vencer mil obstáculos, inclusive um terrível vilão, contando apenas com os ensinamentos de um mestre e a ajuda de amigos que encontra pelo caminho. No final, ele retorna quase morto mas vitorioso ao mundo inicial, que conseguiu salvar da ameaça externa. Só que volta transformado: em vez da pessoa comum de antes da aventura, ele agora é o herói. 

Desde a publicação de O Herói de Mil Faces, a teoria de Campbell tem sido aproveitada por inúmeros escritores, roteiristas e diretores de cinema. Alguém aí pensou em Luke Skywalker (o herói), a Estrela da Morte (a ameaça), Yoda (o mestre), Han Solo, Chewbacca, C-3PO e R2-D2 (os amigos) e Darth Vader (o terrível vilão)? Pois pensou certo. George Lucas bebeu na fonte de Campbell para compor a saga Star Wars. E está longe de ser o único. Pense em Harry Potter, ou qualquer outro herói contemporâneo. 

Mas vocês devem estar se perguntando: Tá, mas o que eu e os palestrantes do Ossobuco temos a ver com esse tipo de jornada heroica? Levando a história ao pé da letra, nada. Mas você pode substituir o Darth Vader ou o Lord Voldemort por um outro tipo de vilão, que dificulta ou mesmo o impede de cumprir a sua jornada de herói, ou seja, o seu objetivo na vida. 

Os exemplos são muitos: depressão, racismo, machismo, baixa autoestima etc etc etc. Pois são esses perigosos vilões que muitos dos heróis e heroínas que sobem no palco do Ossobuco tiveram que enfrentar e, na maioria das vezes, vencer. 

A Ana Paula Bessa, por exemplo, precisou enfrentar o preconceito contra as mulheres gordas. A Natália Nascimento, a violência contra as mulheres trans. A Bárbara Fernandes, uma depressão profunda. Já o Mateus Gandara lutou contra a morte – e perdeu, mas caiu lutando, como eu vou contar mais adiante. 

Já deu dez minutos? Aliás, vocês devem estar se perguntando por que cada palestra do Ossobuco só dura dez minutos. Existem várias versões. Segundo uma dessas versões, experimentos neurológicos avançados, desenvolvidos nos mais respeitáveis centros de pesquisa do mundo, com equipamentos de última geração, chegaram à conclusão que o cérebro humano trava depois de dez minutos de narrativa. 

Ah, então é por isso? Negativo! Absolutamente falso! O fato, a verdade nua e crua, é que no início do projeto, lá em 2010, os cartões USB das câmeras que gravavam as palestras simplesmente travavam depois de 11 ou 12 minutos. [risos] Sim, este é um dos raros casos em que o fato é bem melhor que as versões. 

Bom, a história vai chegando ao fim, porque meus dez minutos estão acabando. O fato é que o Ossobuco está comemorando dez anos de existência, com mais de 350 palestras no currículo, e agora sem o trio original de fundadores. Thum hoje mora em São Paulo, Daniel em Londres e Leandro em Nova York. Acompanham o projeto de longe, afetivamente, e quem toca o barco é a Heloísa Rocha, a Helô (organizadora e curadora), em parceria com Vinicius Santos (diretor de arte), Denise Köche (apresentadora e também curadora), e Nana Yung (produtora). 



A Helô, inclusive, tem uma história interessante. Ela iniciou sua jornada no Ossobuco como fã de carteirinha. Tinha praticamente cadeira cativa na plateia. Depois, além de palestrante, tornou-se uma espécie de termômetro informal do Thum e do Daniel, que a consultavam para aferir a temperatura de cada edição.


Até que em 2014 ela assumiu a organização do projeto, sempre como voluntária. Todo mundo, aliás, trabalha sem receber um tostão, porque acredita no projeto e porque durante muito tempo o Ossobuco não teve patrocínio. Agora tem, do CCBB, mas a grana por enquanto só dá pra pagar a galera de apoio, não a equipe.


Conversando com a Helô, ela me disse que se encantou com o Ossobuco logo de cara. Amor à primeira vista mesmo. Ouvir as pessoas compartilhando suas histórias e contando como conseguiram sair de seus perrengues foi muito inspirador para ela, que vivia uma fase de desencanto com a publicidade tradicional. “O Ossobuco faz parte da minha vida e do meu crescimento”, me disse a Helô.


Já deu dez minutos? Quase, né? Ok, terminando então. Mas antes eu quero contar das conversas que tive com alguns palestrantes, para saber o que eles pensam sobre o Ossobuco. 


A escritora Paulliny Tort disse que o mais legal do projeto é exatamente aquilo que o define: a ideia de que todo mundo tem uma história interessante pra contar, que se você olhar de perto a vida das pessoas vai ver que todas elas têm as suas sagas, os seus desafios, os seus momentos de extrema alegria ou de extrema tristeza e de superação. 


E um projeto voltado para a contação de histórias de brasilienses é incrível para a cidade, porque Brasília ainda está ilhada, isolada do país no que se refere a produção de conteúdo, cultura, informação.


O empreendedor social Max Maciel lembrou que nas suas duas participações no Ossobuco teve a oportunidade de falar sobre como enxerga a cidade e de como foi possível, a partir de projetos como o Jovem de Expressão, da Ceilândia, transformar a lógica de segregação socioespacial do Distrito Federal. E destacou a importância da troca de ideias com uma plateia exigente e participativa, por meio da qual o palestrante pode expressar seu conhecimento ao mesmo tempo que cria oportunidade para que outras pessoas tirem seus projetos do papel e construam novas histórias.


Para a fotógrafa Juliana Caribé, mesmo histórias íntimas como a dela – que envolve a perda do pai, a depressão pós-parto, a difícil relação com o corpo e a redenção por meio do projeto fotográfico Toda nudez será permitida – ao serem compartilhadas têm o poder de gerar identificação e senso de acolhimento. O Ossobuco, segundo ela, conecta pessoas e histórias e abre caminho para que as pessoas se envolvam nos projetos umas das outras e que coisas legais aconteçam. A Ju me disse que não esquece a frase de uma mulher da plateia, que virou uma espécie de mantra para a sua vida: “Vulnerabilidades geram conexões”.


Conversei também com a Gaivota Naves, e ela me disse que é muito grata ao Ossobuco, e que foi lindo poder contar a sua história no palco. É uma história triste – o acidente, as muitas cirurgias, a morte do namorado – mas também de superação, e que compartilhar histórias como a sua pode dar a coragem necessária para outras pessoas que estão passando por situações também muito difíceis. É uma forma de dizer, ela me disse: “Cara, você não está sozinho, porque de formas completamente diferentes mas ao mesmo tempo muito próximas nós estamos juntos, e precisamos dessa força pra darmos conta de estar vivos”.


E com isso chegamos ao fim da história, por conta do tempo que está se esgotando. Mas antes é preciso dizer que o próximo passo da Helô e companhia é levar o Ossobuco para São Paulo. Já estava tudo acertado, mas no meio do caminho tinha um vírus na contramão. 


Enquanto durar a pandemia, o projeto agora é Ossobuco na sua casa. Já rolaram duas edições em forma de lives, e vai ser assim até o fim da quarentena. Se bem que o formato remoto pode ser aproveitado no futuro, incluindo palestrantes de fora de Brasília. Afinal, como diz a Helô, o Ossobuco é um grande laboratório, onde toda experimentação é permitida. 


Mas já que o Ossobuco é sobre contar histórias, eu não poderia terminar minha fala de dez minutos sem contar duas histórias, uma engraçada e outra triste. Primeiro a triste, que me foi contada pelo Daniel.


Um dia, o Daniel se viu frente a frente com a difícil tarefa de treinar o ilustrador Mateus Gandara, que na época tinha um câncer terminal no pulmão. O Daniel havia acabado de perder a melhor amiga e também a avó, e teve medo de começar a gostar do Mateus, que estava perto do fim da vida. “Eu fico amigo do cara e ele morre em seguida?”, ele se questionava. 


Daniel estava certo: era difícil não gostar do Mateus, que fez a plateia morrer de rir, com lágrimas nos olhos, é claro, contando como estava se despedindo da vida. A jornada desse herói terminou um mês depois da palestra: aos 28 anos de idade, Mateus Gandara acabou derrotado por um vilão invencível. 


Agora, para terminar, a história engraçada, contada pelo Thum:


Eis que naquele dia a palestrante era uma das primeiras lésbicas que se beneficiaram da aprovação do casamento gay no DF. Thum preparava o equipamento para gravação do vídeo, enquanto Daniel preparava a palestrante para entrar em cena. E eis que Thum descobre que falta a peça que acopla a câmera ao tripé e sem ela não dá pra fazer a gravação. 


A palestra já vai começar. Esbaforido, ele então interrompe a conversa de Daniel com a palestrante, perguntando pela peça. O problema é que a tal peça se chama justamente... sapata. E o Thum perguntando, aflito: “Daniel! Daniel! Cadê a sapata? Cadê a sapata?”, diante do olhar indignado da palestrante lésbica. [risos]


Dez minutos, já? Como o tempo passa rápido. Bom, então é isso. Não quero ultrapassar meu tempo. Foi um prazer estar aqui. Quem quiser assistir às palestras do Ossobuco, elas estão disponíveis no canal do projeto no youtube. Obrigado a todos e todas, e até a próxima. 


                         [aplausos]


 
 
 

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