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MANUELZÃO: VEREDAS

Atualizado: há 6 dias

Correio Braziliense, 26 de maio de 1996 / versão integral Por José Rezende Jr. Fotos: Raimundo Paccó @raimundopaccofotografias


No Grande Sertão: Veredas é tudo coisa verdadeira, acontecida. Até a história de Riobaldo e Diadorim. Que eles existiram todo o sertão sabe. Mas eu não acredito que Riobaldo conviveu tantos anos com Diadorim sem saber que aquele jagunço era mulher. Se bem que tem muita mulher de coragem. Mamãe mesmo: se precisasse, ela atirava.”

 


  Fotos: Raimundo Paccó  @raimundopaccofotografias


­ - Nonada

    Sertão que o senhor veio procurar existe mais não. Nada. O sertão foi sertão no tempo em que existiu cerrado bravo. Era um cerradão danado. De Curvelo pra Andrequicé a gente viajava um dia inteiro de a cavalo e o cerrado não acabava nunca. Agora acabou. O senhor viaja dois dias e só vê plantação de eucalípi. O sertão virou eucalípi. Eucalípi pra virar carvão. Carvão pra virar ferro. 


    Maritaca tinha muita, arara tinha demais, sô. Acabaram com as frutas do cerrado, acabou-se o cumê dos passarinhos. Procurando muito, o senhor ainda encontra uma perdiz aqui, outra acolá... Onça vez em quando aparece alguma, mas só da passageira. Onça moradeira existe mais não.


    O senhor vá numa plantação de eucalípi. Entre dentro, pra ver e pra ouvir. Não tem passarinho cantando. Eucalípi não dá nem marimbondo. Nem cobra. Sei, o senhor vai dizer que cobra é até bom de não ter. Mas não: todo bicho faz falta. Cascavel, que é cobra mais brava, não é de todo má: ela bate o chocalho pra dar sinal. Prestando atenção, a pessoa não pisa na rodilha dela. 


    Se cobra tem alguma serventia? Até tem, sô. Diz’que quando ela tá enrolada e suspira, a catinga que sai da boca dela serve pra livrar o gado de alguma doença. O senhor mire veja: cobra também tem qualidade.


    O senhor quer saber muita coisa do sertão. Jornalista vive é de perguntar. Mas eu conheci um mais perguntador que o senhor. Um João Rosa. Ele juntava gente velha e fazia o mesmo que o senhor tá fazendo agora. Perguntava e escrevia. Mas ele usava um caderno maior que esse, um caderno aspiral grosso pendurado no pescoço. E no lugar de caneta escrevia com um lápis bem apontadinho que levava no alforge.


    De tudo que ele via, de tudo ele perguntava. De tudo queria definição. Via um pau de sucupira: quando a folha é velha e cai, o senhor sabe, ela é roxa; quando nova, é verde. Aí ele queria saber o motivo dessa diferença de cor. Por que esse mato aqui é mais seco que aquele acolá? Que nome tem esse passarinho? Por que ele canta desse jeito e não daquele?... 


    Tinha dia que ele enchia um caderno inteiro. Tinha dia que eu ficava enjoado de tanta pergunta. Vou confessar uma coisa pro senhor, que agora eu posso: inventei muito nome de pau de árvore que o João Rosa me perguntou e eu não sabia. Fazer o quê? Ele queria nome de tudo, uai. Inventei, mas num inventei muito não. E só invenção que parecia coisa verdadeira. 


    Aconteceu no ano de 1952, num mês de junho. Eu trabalhava na Sirga, na barra do rio de-Janeiro com o São Francisco. Fazenda do Chico Moreira, primo primeiro do João Rosa. De primeiro, a gente queria chamar ele era de doutor Joãozito, que era como o povo conhecia ele. Mas ele mesmo proibiu. “Ocês não me chamem de doutor, que nós somos companheiros nessa viagem”, ele falou logo no primeiro dia, antes de nós sair pra tanger o boi. E ficou sendo só o João Rosa. 


    A gente não conhecia ele. O Chico Moreira é que falou que tinha um primo escritor, um que foi médico da polícia e cônsul no Rio e depois se mudou pro estrangeiro. Esse João Rosa queria escrever um livro: pra isso foi até no Sul da Bahia de carro e de avião, mas não achou fundamento pra história que queria contar. Aí o Chico Moreira falou assim pra ele: “Mas ocê tem que vir é pra Minas. E não pode viajar de carro e de avião. Tem que andar é de a cavalo, sô. Se não ocê não aprende nada”. 


    E ele veio, aproveitou que a gente ia levar uma boiada pra engordar na fazenda Algodãozinho, perto de Cordisburgo. O Chico Moreira perguntou o quê que eu achava e eu respondi: “Ó, o causo é muito fácil. Por conta do senhor eu atolero ele uns dias”. Arrumei pro João Rosa uma mulinha mansa, boa de sela, por nome Balalaica. O senhor não me pergunte por que a mula se chamava Balalaica. Quem batizou ela foi um Décio Diniz, de Pirapora.


    Arrumei animal manso porque pensei que um homem da cidade não sabia montar. Mas ele era bom cavaleiro, sô. Tinha tipo de sertanejo: andava espigado na sela. Se o freguês não sabe montar, anda é emborcado pra frente. Acontece que quando o João Rosa era menino, ele possuía um cavalinho em Cordisburgo. Só que pelo tempo, achei que ele tinha até esquecido o jeito. Mas tem uma coisa que o povo diz e que é a verdade mais verdadeira do mundo: “Quem foi rei nunca perde a majestade”.


    Eu, mais o João Rosa, o Zito, o Raimundo Bindóia... A gente andou por essas veredas. Dava gosto. Se o João Rosa visse as veredas hoje ia morrer de tristeza, que nem eu morro. O senhor não se fie só nas minhas palavras, faça o seguinte: vá até uma vereda, mire veja. Ah, o senhor já foi? Parou o carro distante e foi de a pé? Claro que não. Eu sabia que não, perguntei por perguntar: carro de gasolina hoje entra é dentro de vereda. Tudo secou. 


    As veredas secas. As veredas mortas. Era tanta água que animal tinha até medo. Quem haveria de dizer? Se automóvel hoje entra em vereda deve de dar graças ao eucalípi. Em vez de chamar chuva, que nem os outros paus de árvore, eucalípi faz é chupar água da vereda. Seca tudo. E tem mais: a companhia joga veneno pra matar as pragas do eucalípi, vem a enxurrada e leva o veneno pra dentro dos córregos, mata peixe e tudo o que há. O senhor queria ver sertão? Existe sertão? Nonada.


    O João Rosa passou lá na Sirga uns 35 dias juntando gado com a gente. Nós saímos pra viajar com as reses numa segunda-feira. No domingo teve a festa, aquela de quando o padre foi benzer a capelinha e o cemitério que eu construí: a festa que o João Rosa contou no livro Manuelzão e Miguilim, o senhor sabe, o senhor leu. Mas da festa eu falo depois, o senhor me lembre.


    Se a minha memória ainda tá boa? Tá ruim não, sô. Mas vez em quando eu vejo uma pessoa conhecida e não sei o nome. Deve de ser culpa das minhas vistas. Esses óculos aqui tão até bons: quando eu quero ler, vou afastando eles assim devagarinho, caçando as palavras, até enxergar direito. Mas eu tenho bem uns quatro óculos que não valem nada. Valeram, mas não valem mais, não sei por quê. O senhor sabe?


    Mas eu falava do João Rosa juntando o gado com a gente. Falei da festa? Falo depois. Antes da festa, ele até ajudou a limpar a capelinha. O João Rosa não tinha nojo de pegar enxada e foice. Não pegava bem feito, mas tinha boa vontade. Aí, na segunda-feira, a gente saiu viajando com o gado. Naquelas horas ele não queria ser doutor, queria era ser vaqueiro, que nem nós. 


    Dormia no mato, debaixo de estrela, arranchava junto com nós. Só que no primeiro dia ele acordou e tomou só um copo de leite e comeu um biscoitinho de polvilho. Eu vi que aquilo não ia dar certo: vaqueiro acordava de madrugada era comendo carne seca e beiço de porco fervido no feijão e bebendo gole de pinga. Quem é que aguenta andar um dia no mato a cavalo sem comer um trem forte? Ele também não aguentou: no segundo dia, tava o João Rosa no beiço de porco e na pinga. Ele bebia nesse mesmo cuité que o senhor tá bebendo agora.


    Quer mais uma? Faço gosto. Esse cuité tenho ele pra mais de 50 anos, quem me presenteou foi um João de Campos, o senhor veja o “J.C” gravado aqui na prata. Tirante a moldura de prata, o resto dá em pau de árvore. Árvore de cuité, não sei se o senhor conhece. O senhor vai no pé, escolhe um e dobra o talo: a cabaça amadurece mas não cresce. Aí parte ela em duas bandas, tira o caroço e vira dois cuités. 


    O senhor tá servido? Tem uma coisa do sertão que o progresso não conseguiu acabar: a pinga. Ainda se faz e se bebe muita pinga boa nesses Gerais. Eu não posso, tô em uso de remédio. O médico me proibiu, por dois meses. O senhor beba por mim, faça o favor.


    Progresso? Uai, não é ruim não, sô. Mas carecia de luz elétrica? Carecia nada. Tinha candeeiro de azeite que iluminava igual. Chuveiro elétrico presta? Presta. Mas era só quentar bacia d'água pra banhar no quente do mesmo jeito. Hoje todo mundo tem televisão. Antes, quando não existia, o povo fazia mais festa, vinha tocador de viola, tinha uma sanfoninha pé de bode ­ aquela de oito baixos ­, o povo dançava o lundu. Era uma dança bonita, homem e mulher sapateava, batia palma, dava umbigada... Não vou mentir que não vejo televisão: vejo, mas só o jornal. Tem notícia certa e muita mentira também, mas não desgosto.


    Mas progresso tem duas coisas boas. Uma é asfalto. Antes, com um tempo desse o senhor queria ir de Andrequicé pra Três Marias e não andava por conta da poeira. Na chuva, era aquele atoleiro. A outra coisa boa do progresso é vestido de mulher. 


    O senhor não entendeu? Ah, é porque o senhor não conheceu roupa de mulher daquele tempo: era tanto trem que elas botavam pra tampar o corpo... Hoje, qualquer metro de pano dá um vestido de mulher. Progresso é bom? Não é de todo ruim não sô. Mas acabou com vaqueiro. Pra quê vaqueiro, se gado de hoje não anda mais de a pé? Gado anda de caminhão.


     Fazendeiro hoje acha que caminhão é melhor que vaqueiro conduzindo gado pela estrada. Diz’que o gado chega mais depressa e não perde peso na viagem. Mas o senhor preste atenção: a derradeira viagem que eu fiz foi há 15 anos. Comecei a lidar com gado quando tinha dez anos de idade. Era cozinheiro, depois virei arrieiro da tropa, amansador de burro bravo, condutor de boiada... Essa foi minha vida. Ainda é? Não sei. Andei por esses Gerais de ponta a ponta, entrei no Goiás, fui na Bahia, cheguei até no Rio de Janeiro, na divisa, não no litoral. 


    Mas eu falava da viagem derradeira, 15 anos atrás. De João Pinheiro até uma fazenda na beirada do São Francisco, perto de Três Marias, eu e mais 11 companheiros gastamos uns 10, 12 dias de marcha. Eram 980 bois. Se fosse hoje, ia precisar de muito caminhão pra carregar essa boiada toda. 


    Caminhão maltrata muito o gado. Eles usam um ferrão elétrico pra levantar boi caído. Aí o gado fica nervoso e vai pisando um no outro. Boi sofre muito em caminhão. E aquele ferrão elétrico? A gente tá comendo carne com eletricidade. Deve de fazer mal, o senhor não acha?


    Tem outra coisa, isso do gado perder peso depende do vaqueiro encarregado. Tem uns que não deixa boi pastar direito, beber água, descansar quando tá cansado. Carece ter paciência. Se quiser andar muito depressa, acaba apertando demais o gado, um pisa no pé do outro, pega a mancar. 


    Eu cuidava tão bem do gado que no final da viagem o dono até me dava um agrado. Era um dinheirinho bom, dava pra pagar as extravagâncias da viagem. O senhor sabe: a mulherzada da noite. Os cabarés. Existia naquele tempo. Cabaré era escondido, a gente entrava lá e esquecia da vida, tinha o de comer, o de beber... Hoje é tudo no meio da rua: parece que escondido ninguém mais quer fazer essas coisas…


    Acabou cabaré daquele tempo, não tem mais mulher da vida, que era mulher de respeito: passava séria na rua e não dava bola igual dá hoje. Acabou vaqueiro. O senhor preste atenção: existiu um Aristidinho, um vaqueiro antigo que trabalhava pros lados da Sirga. 


    O Aristidinho morreu e pediu pra ser enterrado na beira da estrada, pra ver as boiadas passando. O senhor vá até lá: meia légua antes das Pedras, onde eu construí a capelinha da minha mãe, tem um cercadinho com um cruzeiro e um pau de árvore que o povo chama de pau gonçalves. É a sepultura do Aristidinho. Coitado: queria ver boiada passando de a pé e só vê é caminhão carregando boi. Será que vê? Vê nada. Eu não acredito. O homem morre, se acaba por inteiro. 


    Vejo que o senhor discorda, mas eu penso assim. Alma? Alma é o sangue.

Tanto faz morrer um homem e morrer uma galinha: depois de morto, sangue coalha igual. O senhor pode até dizer que a diferença é que pessoa fala. Mas bicho também fala. Como é que um galo toma conta de 30 galinhas, se não for com muita conversa? Quando o senhor pegar a estrada e encontrar uma boiada, pare e preste atenção. Repare bem: boi não conversa com boi? Conversa, sô. Gente é que não entende a linguagem deles.


    Mas papagaio entende língua de gente. Quando o João Rosa foi embora, queria comprar um papagaio que eu tinha. Eu não aceitei paga, dei de presente. Era um papagaio inteligente, chamava cada vaquinha pelo nome. Antes eu tive outros dois papagaios. Esses cantavam em dupla: “Encosta sua cabecinha no meu ombro e chora”... O povo ouvia e achava que era cantoria de pessoa humana. 


   Pois o João Rosa levou o bichinho pro estrangeiro. ­ O outro, não um dos que cantavam em dupla. Depois, mandou carta contando que o papagaio tinha aprendido dois idiomas, fora o português. Acho que italiano e alemão. O senhor duvida? Pois eu lhe conto outra:


    Perto de Dom Silvério, minha terra, tinha um arraial por nome Córrego Escuro. Lá existiu um fazendeiro, um Modesto Barba. Ele possuía um papagaio ensinado, que ficava em riba da porteira. Quando chegava um cavaleiro, o papagaio mandava apear, falava pra amarrar o cavalo na sombra. Dava até notícia do dono: “O sêo Modesto Barba foi na venda mas não demora, o senhor espere”. 


    Mas tinha uma coisa: o papagaio era velhaco. Esperava o cavaleiro apear e estrumava cachorro bravo em cima: “Pega, nego! Pega, nego”! Cachorro conhecia a conversa do papagaio e corria pra morder o pobre do freguês. É causo verdadeiro, acontecido, sô. O senhor crê? 


    Eu creio. Não acredito é em causo de assombração. O povo tem medo e inventa coisa. Vê ventania rodando e fala: “lá vai o diabo na rua, no meio do redemunho”. O diabo, o capeta, o demo, o sujo, o cujo, o coisa-ruim... Existe não. Diz’que o capeta tenta a pessoa. Nada. Tem gente que é tentada por si mesma. Mas todo ser humano tem o bom e o ruim dentro dele. Ninguém é de uma natureza só. Deus? Nunca vi, mas existe. E Ele são três pessoas dentro de uma só. O senhor não me pergunte como isso é possível. Nem padre explica: diz’que é mistério.


    Por falar em padre: eu fiquei de contar pro senhor da festa, aquela do livro. Primeiro, falo da capelinha. Mas antes, conto da minha mãe, Rosa Amélia Nardy. Esse Nardy é sobrenome italiano, meu avô veio fugido da Itália. Era revoltoso. Revoltoso contra o quê? Acho que contra nada: depois de velho ele foi passear na Itália e ninguém nem matou ele... 


    Mas eu e minha mãe morávamos nas Pedras, um comerciozinho que tem beirando o córrego das Pedras, que deságua no rio de-Janeiro, que vai dar no São Francisco. Foi no ano de 47 ou 48. Eu e ela fomos num velório. Na volta, mãe passou mal e parou pra descansar. Aí ela falou que ali era um bom lugar pra existir uma capela e um cemitério. E morreu logo depois. 


    Eu fiz a capela e enterrei mãe do lado dela. Mandei cavar a cova duma fundura maior que a cumeeira desta casa, que era pra tatu não remexer os ossos da minha mãe. Na capela, botei a imagenzinha da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. A capela hoje só tem uns pedaços, mas a imagem eu guardo até hoje. O senhor quer ver? Aprendi a fazer o primeiro pai-nosso nos pés dessa santinha, que antes ficava no quarto de mãe.


    Bom, aí eu chamei o padre pra benzer o lugar. Ele disse que pra fazer a capelinha eu tinha que doar o terreno pro patrimônio da Igreja. Eu respondi que não tinha terreno nem pra morar quanto mais pra dar pros outros. “Padre, eu não vi Deus fazer o mundo, mas diz’que tudo foi Ele que fez. Antão, a madeira que eu usei na capela foi feita por Deus. O senhor não quer benzer, não benza: já é tudo sagrado por natureza”, eu disse. E panhei preguiça de padre. 



  Fotos: Raimundo Paccó  @raimundopaccofotografias


    Não sei se o senhor concorda, mas pra mim não precisa de padre nem de igreja, eu rezo é montado num cavalo, no mato, debaixo dum pau de árvore, no meio dos bichos. Se eu tiver que pedir perdão a Deus, todo lugar serve. E se Deus tiver que perdoar, perdoa. O senhor aprova? Fico satisfeito.


    Mas uns anos depois, já em 52, um padre aceitou ir benzer a capela. De graça. Aí eu resolvi fazer a festa. Aquela que tá no livro, Manuelzão e Miguilim. Coincidiu que o João Rosa tava lá com a gente juntando o gado. Sorte dele. E minha, que passei a existir em folha de livro. Porque aquela história é a minha história, o senhor sabe. Se bem que ele aumentou um pouco o floreado.


    No Grande Sertão: Veredas ele fez a mesma coisa. É tudo coisa verdadeira, acontecida. Até a história de Riobaldo e Diadorim. Que eles existiram todo o sertão sabe. Mas eu não acredito que Riobaldo conviveu tantos anos com Diadorim sem saber que aquele jagunço era mulher. Estou falando não do livro, mas da história verdadeira. O senhor não sabia? Pois eles existiram. Matavam pra ver a queda. Impossível Riobaldo não descobrir que Diadorim era fêmea. Se bem que tem muita mulher de coragem. Mamãe mesmo, se precisasse ela atirava.


    O senhor veja a Bruna Lombardi, que vestiu de homem e cortou o cabelo curto pra fazer o seriado da Globo. Mesmo que eu não soubesse que era a Bruna Lombardi, eu ia ver que era mulher. E uma mulher bonita, sô. Se bem que muito pequenininha. Ela usava um salto desse tamanho pra aumentar a distância. 


    No livro do Manuelzão e Miguilim , o João Rosa inventou que eu era solteiro e tinha um filho meio encrencado, o Adelço, casado com uma Leonísia. Mas na ocasião eu era casado com a primeira patroa, uma Luiza Alves, que morreu em 54 e tá enterrada junto com a minha mãe. A gente tinha uma filha grande, a Maria. O único filho homem era o Nilson, que tinha nove anos de idade.


    Mas é assim mesmo: se a pessoa quiser escrever um livro tem que aumentar o floreado. Mas o resto foi tudo acontecido mesmo. Se a festa foi boa que nem no livro? Ó, não foi desanimada não, sô. Desde que chegou lá na Sirga o João Rosa me pediu pra arranjar uns tocadores de viola, uns dançador de lundu, uns contador de piada. E no dia da festa era o que mais tinha. Tava lá a melhor contadeira de história, que era a Joana Xavier. O senhor conhece, lembra dela, eu sei: é personagem do livro, com o nome de Joana Xaviel.


    O João Rosa gostava era de gente velha, contadeira de história e de bobagem. Ia dormir de madrugada, conversando e perguntando. Com pouco tempo ele não tinha diferença do povo do lugar. Aonde chegava, o João Rosa tava empastado, que nem a gente diz do boi que se acostuma com pasto novo. De um dia pro outro ele aprendia o sotaque do povo falar, falava igual, parecia que o espírito do avô do contador da história tinha encarnado nele. Eu não acredito nessas coisas, o senhor sabe. Mas parecer parecia. 


    O senhor já reparou, tem muita coisa que eu não acredito. Diz’que o homem foi na Lua. O senhor vai rir de mim, mas eu não creio. Se é verdade, por que que até hoje só estrangeiro foi lá? Por que que nunca um mineiro pisou na Lua? Pois antão? E eu também não acredito em céu, inferno e purgatório. Existe não. Ou existe e a gente aqui já vive ora num, ora noutro.


    Pessoa tando viva corre perigo. Tem muita coisa que persegue o vivente. Tem sempre um com inveja do outro, achando que convém fazer algum mal, matar. Diz’que onde vive o homem vive o perigo. Coração dos outros é terra onde ninguém pisa. O senhor vê uma pessoa rindo, parece alegre, mas por dentro o coração tá trancado. Viver, o senhor sabe, é muito perigoso. Mas também é muito bom. 


    Enquanto eu puder andar, beber minha pinga, resolver minhas coisas sozinho, eu quero viver. Mas se for pra ficar em riba duma cama, melhor morrer duma vez. Eu achava que não ia passar dos 90. O senhor escreva: morte não vem sem desculpa. Dia dela chega. Eu já estou velho. Se bem que uma vez por semana ainda me dá o palpite. O senhor não entendeu? Explico, com todo o respeito: quando o senhor vê uma mulher muito formosa e com pouca roupa, o senhor não sente o trem palpitar? Pois é, toda semana me dá o palpite.


    E eu ainda monto num cavalinho. Mas só se o animal for manso, com paciência de esperar eu montar, porque o difícil pra mim é subir no cavalo. De um ano pra cá a perna não suporta direito o peso do corpo. Fui muito alto, tive pra mais de metro e noventa. Agora, encubuquei, fiquei mais pequeno Será a idade? Só pode.


    Em 86, quando eu tinha 82 anos, fui desenganado prum hospital em Belo Horizonte. Era uma úlcera, essa mesma que quer voltar agora. Um médico que me operou, um careca, esse já se foi, coitado. E eu continuo aqui. Na ocasião, uma enfermeira perguntou se eu não tinha medo de morrer. Eu respondi em verso:                   

  Não tenho medo da morte

porque sei que vou morrer.

Tenho medo é de amor falso

que mata sem Deus querer. 


  Mas amor verdadeiro mata também. Outro dia eu tava conversando mais a Didi, que é a minha patroa. Tamos casados há 41 anos, desde que a outra morreu. Eu comentei que, por comum, a mulher sempre acaba mais depressa que o homem. Mas ela disse, brincando: ­ “Ocê já levou uma e tá pelejando pra levar outra, mas eu acho que nós vamos é igual”. Eu concordei com ela: ­ “Se você morrer antes de mim, é capaz de eu não durar seis meses”. 


    É como o povo diz: Lá chove e cá corre, e o mundo acaba é pra quem morre. A verdade é que toda pessoa morre. E morre do mesmo jeito que animal, eu já disse pro senhor. Morre e não fica nem alma, que alma é coisa que não existe. 


    O senhor quer saber se eu tenho medo de morrer e não sobrar nada de mim? Mas vai sobrar sim, sô. Um João Rosa passou por aqui há muitos anos e escreveu sobre o sertão e sobre um Manuelzão, um vaqueiro que só sabia ler, escrever e fazer as quatro operações de conta. O senhor pode dizer que o João Rosa morreu de todo? E que não vai ficar nada do vaqueiro que virou personagem? 


    Nonada.

    Viver, o senhor sabe: travessia.






 
 
 

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