Mulheres que voam com pássaros
- joserezendejr
- 20 de fev.
- 7 min de leitura
Atualizado: 18 de abr.
(revista Traços nº 41 / julho de 2020)
Por José Rezende Jr.
Fotos: João Saenger
Sem medo das quedas provocadas pela pandemia, as intrépidas circenses do Instrumento de Ver contam com o apoio do respeitável público para seguir
em frente e para o alto.

“A arte enquanto modo de vida é essa corda bamba, pode parecer loucura ou extravagância caminhar em um fio, mas não podemos esquecer que a outra opção é estar no chão e, às vezes, esse chão pode ser areia movediça.”
(trecho de uma das cartas do correio elegante que o coletivo Instrumento de Ver envia por e-mail ao público durante a pandemia)

Avenida Central, Vila Planalto, rua da padaria, ao lado do salão de beleza. A fachada colorida contrasta com o cinza que o silêncio ecoa. O que antes era o ruidoso riso de gente feliz treinando ou aprendendo a voar, e o farfalhar das asas das mulheres voadoras em acrobacias aéreas de tirar o fôlego, agora é só o som metálico produzido pela artista circense Julia Henning no instante em que ela, solitária, gira a chave e abre o galpão vazio. Em outros tempos esse seria um treino coletivo, e Julia teria a companhia de suas três parceiras de itinerário pelos ares (Maíra Moraes, Beatrice Martins e Bela Levi), mas a pandemia cobra solidão, e apenas uma delas pode ocupar o galpão de cada vez.

Julia olha os aparelhos suspensos no teto e antevê o voo, mas o momento exige os pés bem firmes no chão – ainda que o chão seja às vezes areia movediça – e ela então esfrega o piso, as maçanetas, as cadeiras, as torneiras, o trapézio e tudo o que há no mundo com litros de água sanitária, e depois espera que o tempo se encarregue de secar.
O combate ao vírus invisível e feroz dura quase tanto quanto o próprio treino – este, por sinal, adaptado à pandemia: há que se domar os instintos, não voar tão alto, minimizar os riscos, evitar as manobras aéreas mais perigosas e, mais do que nunca, temer a queda, porque em caso de acidente não haverá ninguém para prestar socorro.
Celebração da vida
Difícil medir a altura do tombo. A pandemia atingiu o Instrumento de Ver num dos melhores momentos de sua história. Aplaudida por mais de 16 mil pessoas de 70 diferentes cidades brasileiras, a trupe vem há quase duas décadas encantando plateias com espetáculos como Meu chapéu é o céu, O que me toca é meu também e Porumtriz. Durante esse tempo, ajudou a formar uma nova geração de artistas de circo por meio de cursos e oficinas, e participou de mostras e festivais pelo Brasil e o mundo afora.

Agora era a hora de voar ainda mais alto. Não fosse o vírus, o coletivo estaria agora na França, numa residência artística de dois meses para, em 2021, realizar o sonhado tour francês com o espetáculo 23 fragmentos desses últimos dias.
Como se não bastasse, Julia, Maíra, Beatrice e Bela viram também cancelados o musical Brasília, veja você, homenagem de Oswaldo Montenegro aos 60 anos da cidade, no qual o Instrumento de Ver teria papel central, e o espetáculo ÓTIMOMÁXIMO, que seria encenado a convite do CCBB.
“Estávamos com um monte de projetos. De repente não tem mais nada, não tem dinheiro, foi tudo cancelado. Imagina isso na cabeça de uma pessoa. Ficamos todas bem baqueadas no início”, Julia conta.

“Mas em momento nenhum a gente parou nesse discurso de ‘ai, tadinha da gente’. Pelo contrário. Um dos papeis da arte, talvez o principal, é produzir sentido. Então a gente continua produzindo outros sentidos, outros mundos, criando possibilidades de futuro. Quando a pandemia passar, vamos continuar de onde paramos. A gente tá superviva, se reconstruindo, entendendo a arte como celebração da vida.”
O mais importante e bonito é que o Instrumento de Ver nunca esteve sozinho na celebração da vida. Sem dinheiro, sem contrato, sem patrocínio, sem editais à vista, Maíra, Julia, Beatrice e Bela recorreram à parceria carinhosamente tecida com o público ao longo do tempo. O pedido de apoio veio em forma de um texto publicado nas redes sociais logo no início da pandemia:
“Nossa arte é o nosso ofício, esse é o nosso ganha pão. Infelizmente, em tempos de confinamento, o setor cultural foi o primeiro a ser paralisado. Nossa galpoa está fechada, o aluguel vence na quarta. Nossas apresentações foram canceladas. Nossas viagens adiadas. Assim como muitos de vocês, não temos perspectivas para os próximos meses. Mas temos muito: temos vocês, temos essa rede costurada com amor e preciosismo, nesses nossos 18 anos de coletivo. Preparem-se para estar conosco nesses próximos dias.”
O chapéu virtual deu certo: graças às doações e rifas, o coletivo conseguiu pagar os aluguéis de abril, maio e junho do galpão da Vila Planalto, a sede própria do coletivo, carinhosamente conhecida como galpoa.
E mesmo em tempos de tanta escassez, o Instrumento de Ver se uniu a outras companhias do Distrito Federal para criar a Rede Circo Brasília, fundo de assistência a artistas circenses que se encontram em situação de vulnerabilidade social. De tudo o que arrecada com a generosidade de seu público, o coletivo generosamente doa 25% para esse fundo.
“Quando a gente tá nos piores momento, é o nosso público que nos abraça e nos resgata”, agradece Maíra Moraes.
Salto mortal
Um dos abraços mais estreitos do público veio no final de 2017, em meio a outra crise. Mais uma vez sem dinheiro, sem contrato, sem patrocínio e sem editais à vista, Beatrice, Bela, Maíra e Julia enfrentavam outro obstáculo: a ausência de espaços culturais públicos em Brasília, a maioria fechados por tempo indeterminado, para reformas intermináveis. E os que estavam abertos eram pequenos demais para tantos sonhos e coisas. “O que existia já não cabia a gente”, elas disseram na época.

Em vez de recuar, optaram pelo passo à frente. Mais que um passo à frente, um salto mortal, como elas mesmas definiram, e alugaram um galpão na Vila Planalto. Era um sonho antigo: a sede própria onde abrigar treinos, ensaios, cursos, oficinas, espetáculos, tudo o que já não cabia em lugar nenhum.
O único problema: não havia dinheiro para a reforma e o banco negou o crédito, como é da natureza dos bancos. A solução foi buscar financiamento colaborativo, via Catarse, para confirmar o que sempre souberam: o salto mortal tinha rede de proteção e afeto.
Em pouco tempo a campanha ultrapassou a meta inicial de R$ 38.100 e arrecadou R$ 45.819. E foi assim, com o abraço apertado do público, que o galpão descolorido virou galpoa e ganhou ares e cores de espaço multiuso aberto à diversidade de artes e gentes.
“Agora, nessa pandemia, tá acontecendo bem isso de novo. A galpoa tá sendo subsidiada pelo público, inclusive por gente que nunca pisou lá”, Maíra conta. “Viver de arte é muito frágil no nosso país, estamos ameaçados de extinção a todo instante. Nesse momento tão difícil, é emocionante contar com o apoio de pessoas que acreditam na nossa potência mesmo no momento de fragilidade, que acredita na nossa força de querer mudar o mundo a partir da arte.”
As veias abertas do circo
Ver o Instrumento de Ver em ação é como dissecar o circo e enxergar as engrenagens expostas, pulsando. Não há separação entre artistas e público. Bela, Julia, Maíra e Beatrice recebem os pagantes na entrada, depois entram em cena, depois vendem pipoca no intervalo, depois voltam às acrobacias, e no fim da função são elas que varrem o chão e guardam o cenário.
“Mesmo não vindo da tradição do circo clássico, itinerante, a gente se construiu nesse lugar, na força do imaginário do circo”, define Maíra. “Tudo acontece na frente do público, em tempo real. A gente corre risco de vida aqui e agora. Quem for ver o Instrumento não vai ver personagens, vai ver a gente, esses nossos corpos circenses, vai ver a emoção que as acrobacias aéreas trazem, mas também o humor, a brincadeira, a descontração, num tête-à-tête com o público.”
Maíra, Bela, Beatrice e Julia formam a base do coletivo, que conta também com três parceiros fixos: o videomaker Cícero Fraga, que dialoga artisticamente na área do audiovisual, a designer Bruna Daibert, responsável pelas artes de divulgação dos projetos, e o fotógrafo João Saenger, que ajuda a contar a história do Instrumento de Ver para além dos espetáculos, como no ensaio trancaruaabreajanela, que ilustra esta reportagem.
E o Instrumento de Ver vai agregando outros artistas ao longo da caminhada, formando um coletivo dilatado que se junta para um determinado espetáculo e depois cada qual se desgarra para cuidar de seus próprios projetos.
É o caso de Raquel Karro, que dirigiu os espetáculos Porumtriz e O que me toca é meu também; Leo Sykes, diretor de O meu chapéu é o céu; a francesa Maroussia Diaz Verbèke, diretora de 23 fragmentos para esses últimas dias; o suíço-brasileiro Leon Volet, em cena no mesmo 23 fragmentos...; o Coletivo Antônia, parceiro em Bubuia, espetáculo voltado para a primeira infância; e a companhia de dança dançapequena, parceira em Vin\co.
“O Instrumento de Ver é um casamento artístico”, define Beatrice Martins. “E este é um momento que a gente tem ajudado umas às outras. Às vezes uma tá mais pra cima, outra mais pra baixo... A gente se encontra e se entende nesse lugar. Estamos aí, atentas, questionando e sentindo na pele o que tá acontecendo nesse mundo, tudo reverberando no nosso corpo.”
Para Bela Levi, as acrobacias aéreas são apenas a ponta desse caloroso iceberg chamado Instrumento de Ver. “A gente tem que aprender eletricidade, tem que aprender hidráulica, tem que saber ler e interpretar edital, escrever projeto, fazer planilha financeira... São muitas coisas envolvidas antes de você entrar em cena ou dar aula de acrobacias pra alguém. Cansa, mas é a realização de um sonho sonhado junto. É a certeza de que não estou sozinha nesse barco utópico que é viver da arte.”
E antes que se fechem as cortinas, O Instrumento de Ver se despede do respeitável público leitor da Traços com um número solo de Julia Henning. Um gran finale, no qual a artista circense responde esta pergunta: Para que serve uma trapezista?
“Para voar sem asas, para enganar a morte, para nos tirar do chão, para fecharmos os olhos no momento mais arriscado, para não nos esquecermos do risco da vida, para nos reconhecermos enquanto seres humanos, para ver coisas que os outros não veem, para ver o mundo de cabeça pra baixo, para inverter a lógica, para recriar o mundo.”
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