O ANJO DA MORTE
- joserezendejr
- 26 de fev.
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Atualizado: há 6 dias
Correio Braziliense, 5 de fevereiro de 1996 Por José Rezende Jr. Ilustração: Fernando Lopes @fernandolopesilustrador
Conteúdo Sensível
O Anjo da Morte entra na casa da manicure Dalma e avisa: “Um entre nós hoje morrerá”. Creuza, a melhor amiga de Dalma, acredita ser a destinatária da profecia. Mesmo assim vai para a casa, onde o marido à espera. No dia seguinte, os bombeiros encontram sete pedaços dentro de uma vala. Faltam a cabeça e as mãos.

A PROFECIA
28 do setembro do 1991. Sábado à noite. O anjo da morte caminha pelas ruas do Setor “0”, Ceilândia. Quase um menino, tem 15 anos, é muito magro, usa óculos e sofre do estômago. Leva uma Bíblia debaixo do braço.
Veste o paletó marrom, mais um motivo para que as casas se fechem de medo quando ele passa. Sempre que recebe a missão de avisar a alguém que a morte está próxima, Odelton escolhe o paletó marrom. “Não sou eu quem escolhe. É Deus”, corrige em pensamento, diante de portas e janelas fechadas.
O anjo da morte pra diante da casa, uma das mais pobres da rua. Pede licença, entra. Há muitas pessoas na sala minúscula, quase todos evangélicos como ele, mas ainda assim pecadores, já que bebem cerveja. Talvez estejam comemorando alguma coisa. Talvez, em breve, não tenham mais o que comemorar.
A dona da casa, a manicure Dalma, velha conhecida de Odelton, segura um vidrinho de esmalte cor de rosa. Mas a atenção do anjo da morte fixa-se em outra mulher, a que tem os pés de molho numa bacia com água. A mulher devolve o olhar por um segundo. Depois, abaixa a cabeça.
O anjo da morte avisa que traz uma mensagem. Ele conhece o remetente: Deus. Mas desta vez ignora o destinatário.
Odelton abre a Bíblia, fecha os olhos e medita. Em seguida, olha nos olhos de cada um. E anuncia, com uma voz que já não pertence ao menino magro de 15 anos:
“Nosso senhor Jeová, o Deus de Israel, avisa: uma das vidas entre nós hoje morrerá. Mas se houver arrependimento, o laço poderá ser quebrado.”
DEUS E O DIABO
O anjo da morte foi embora. Creuza, a mulher que tinha os pés na bacia com água, está com medo. Diz a Dalma que a mensagem do anjo da morte provavelmente foi endereçada a ela. A manicure, então, recomenda à amiga que não volte para casa naquela noite.
As duas lembram que Antônio, o marido de Creuza, mandou a filha chamá-la duas vezes. Na terceira, ele foi pessoalmente buscar a mulher. Creuza voltou a dizer que não iria embora ainda. Por isso, dificilmente Antônio deixará de espancá-la quando chegar em casa. Talvez faça coisa pior.
Dalma insiste no convite para que a amiga passe a noite ali. Argumenta que assim Creuza estará livre de mais uma sessão de socos e pontapés. Antônio não entraria à força numa casa alheia. “Você não sabe do que aquele homem é capaz”, responde Creuza.
Na verdade, Dalma, evangélica da Igreja Apocalipse, sempre soube do que o marido da amiga é capaz. Creuza, a irmã Creuza da Assembleia de Deus, tem os dois dentes da frente meio bambos. Dá agonia ver como ela move esses dentes com os dedos, antes de balbuciar: “Foi o Antônio”.
Às vezes, nos grupos femininos de oração, Creuza levanta a blusa de mangas compridas e suspende um pouco a saia que usa sempre abaixo dos joelhos. As irmãs olham as manchas roxas e caem em oração.
Dois meses antes da visita do anjo da morte, as duas amigas oravam no quintal da casa da manicure, perto do abacateiro. De repente, Dalma teve uma visão: Antônio chegava por trás com um revólver e atirava. A bala atravessava as costas da manicure e matava Creuza.
Havia, portanto, motivos para temer o aviso do anjo da morte. Até porque Odelton Pereira, obreiro da Casa da Bênção, tem a fama de não errar nas profecias. Por isso, os vizinhos o chamam de O Anjo da Morte.
A primeira morte anunciada por Odelton foi a da avó que o criou desde pequeno, e a quem ele se acostumou a chamar de “mãe”.
“Mãe, a senhora vai morrer do coração, no hospital da Ceilândia, e sua sepultura será branca”, disse ele, com o coração partido, poucos dias antes que a profecia se cumprisse.
A mãe-avó lembrava que o garoto Odelton, com menos de 2 anos de idade, apontava para o nada e dizia: “Olha, mãe!” Ela olhava e não via nada. Só o neto via.
Aos 3 anos de idade, Odelton costumava sonhar com caixões que tinham pernas e saíam marchando pela rua. No dia seguinte, algum vizinho morria. Aos 9 anos, passou a ouvir vozes e sentir que seres invisíveis o tocavam. Aos 13, começou a ouvir nitidamente a voz de Deus.
Às vezes, Odelton fala também com Satanás, antes de expulsá-lo dos corpos dos possuídos. Satanás gosta de confundir o anjo da morte, fazendo-se passar por Deus. Mas a voz do “Inimigo” é diferente: mais áspera, arrepia e faz doer o corpo. Por isso, Odelton não teve dúvida: naquele sábado, 28 de setembro de 1991, debaixo do chuveiro, era mesmo Deus falando com ele.
“Vá imediatamente à quadra 15. Lá, falarei novamente contigo”, disse A Voz. Odelton interrompeu o banho. Vestiu o paletó marrom. Andou da quadra 11, onde mora, até a 15. Lá, viu o mundo escurecer. Com o corpo dormente, caminhou dez minutos a esmo, guiado apenas pelo vento. Foi quando Deus falou novamente: “Vá à casa de Dalma”.
A SENTENÇA
Odelton acaba de sair da casa de Dalma. Cumpriu a missão. Falou do laço da morte e do arrependimento como única força capaz de quebrá-lo. Mas desconfia que terá sido inútil.
Já está fechando o portão quando A Voz fala novamente com ele. Deus dá a ordem, que a princípio parece estranha. Mas Odelton obedece: senta na calçada, tira os sapatos e bate um no outro três vezes. É um gesto simbólico, bíblico: os apóstolos faziam o mesmo com suas sandálias quando as pregações não eram acolhidas pelos pecadores. Significava que eles, os apóstolos, haviam feito a sua parte. Mas que teria sido em vão.
Odelton entendeu a mensagem. Reflete: “Deus quis me dizer que não haverá arrependimento. O laço está se apertando. A sentença será executada mais cedo do que se imagina.”
O anjo da morte calça os sapatos e volta para casa. Horas depois de sua partida, a manicure Dalma se despedirá da amiga pela última vez. Creuza terá o medo no olhar e, pela primeira vez na vida, as unhas dos pés tingidas de rosa.
Antes de ir embora, a irmã Creuza olhará para os pés com medo de estar cometendo um pecado e dirá, mais para si mesma que para a amiga manicure:
“E se Jesus me vê de esmalte?”
QUEBRA-CABEÇA
“A cabeça! Cadê a cabeça?”
29 de setembro de 1991. Domingo de manhã. O bombeiro Fernando Izaltino mergulha novamente em vão. Já recolheu sete pedaços de dentro da vala. Mas nada da cabeça e das mãos da mulher. São dois braços, duas pernas (subdivididas em duas partes cada uma) e o tronco, completamente despido, que exibe dois seios de tamanhos desiguais.
O bombeiro Fernando Izaltino tem 53 anos, 14 dos quais como soldado do Corpo de Bombeiros. Pesa mais de 100 quilos, tem um apetite voraz e nenhum nojo desse trabalho. Quando terminar o serviço, não perderá o almoço por nada deste mundo. Ao contrário do garoto Josevaldo Ribeiro, 15 anos, morador da Expansão do Setor “O”.
Duas horas antes da chegada dos bombeiros, Josevaldo procurava caju perto da vala, que fica na margem da BR-070, nas imediações do Setor de Indústrias da Ceilândia. Encontrou, boiando nas águas, algo que lhe pareceu o pedaço de uma boneca. Mas quando apertou a coisa com a mão, descobriu que era o tronco de uma mulher de verdade. Perdeu a fome.
As outras seis partes estavam submersas. Pela consistência da carne, os peritos acham que os pedaços devem ter sido jogados ali na noite anterior. Os curiosos percebem os tufos de cabelos nas duas extremidades superiores do tronco, onde antes começavam os braços. Alguém deduz: “Essa aí não raspava o sovaco. Devia ser crente, a coitada”.
Mas se era crente, a ponto de não depilar o corpo, por que usaria esmalte? A esquartejada tem as unhas dos pés pintadas de rosa. Preso ao tronco, mas separado das pernas, o sexo da evangélica parece ainda mais nu, atrai olhares, constrange peritos e populares. Em vida, quantos homens terão visto esse sexo assim tão em evidência?
Os sete pedaços estão dispostos na margem da vala. Vão se encaixando um no outro, como num quebra-cabeça onde faltasse justamente a cabeça.
“A cabeça! Cadê a cabeça?” 0 bombeiro Fernando Izaltino mergulha novamente em vão.
MAMÃE NÃO VEM MAIS
A manicure Dalma ainda dorme enquanto os bombeiros mergulham à procura dos pedaços que faltam. Deitou-se muito tarde na noite anterior, bem depois que o anjo da morte foi embora.
Acorda com alguém batendo na porta. É Cacá, filha de Creuza. Antônio e Creuza tiveram cinco filhos: Mônica, de 12 anos, Cláudia (a Cacá), 11, Claudio, 9, Marcos, 7, e Márcia, 5.
Dalma abre a porta, caindo de sono. “A mamãe não vem mais. Ela vai ter que sair”, anuncia Cacá.
A manicure lembra que na noite anterior Creuza prometera voltar logo de manhã para fazer escova no cabelo. Em seguida, as duas iriam à igreja. Por isso, a manicure acha estranho. Decide ver Creuza antes que a amiga saia de casa e pede a Cacá que leve o recado.
“A mamãe não vem mais”, insiste Cacá, antes de virar as costas.
A poucos quilômetros dali, os bombeiros desistem de procurar a cabeça e as mãos. Vão se passar 15 dias até que a polícia termine de montar o quebra-cabeça. Até lá, duas perguntas ficarão sem resposta: Quem matou? Quem morreu?
BEIJO NA BOCA
Quase impossível imaginar que um homem seja capaz de espalhar aos quatro ventos a suposta traição cometida pela mulher. Mas é exatamente o que faz o pernambucano Antônio Ferreira da Silva Sobrinho, 35 anos, vigilante e bombeiro hidráulico nas horas vagas. Nos dias que se seguem ao desaparecimento da esposa e à descoberta dos pedaços de uma mulher não identificada, Antônio contraria a lógica masculina. Insiste em alardear pela vizinhança: Creuza trocou-o por outro homem. Entrou num Opala preto, beijou o motorista na boca e fugiu para São Paulo.
Antônio procura os vizinhos, um por um, e escancara sua vergonha. Até que manda um recado para Dalma: quer falar com ela, urgente. A manicure fica com medo. Sabe que Antônio nunca gostou dela, achava que era Dalma quem botava ideia ruim na cabeça de Creuza. Coisas do tipo: “Larga esse homem, antes que ele te mate”.
Naquele ano, Creuza havia saído de casa, expulsa pelo marido. Foi trabalhar no restaurante Feitiço Mineiro, na Asa Norte, como ajudante de cozinheira. Uma revolução na vida da baiana de Ipiaú que, aos 32 anos, era incapaz de pegar um ônibus sozinha: analfabeta, não sabia ler sequer os números das linhas.
Um dia, Creuza orou e pediu a Deus que a ensinasse a ler. Pouco tempo depois, lia a Bíblia em voz alta, tropeçando nas palavras, mas feliz como uma criança que acabasse de decifrar o sentido secreto de todos aqueles signos misteriosos.
Trabalhando fora pela primeira vez na vida e tendo aprendido a ler tanto as escrituras sagradas quanto as profanas, talvez faltasse à nova mulher apenas uma paixão. E ela veio, na forma de um cozinheiro, de quem evitava revelar o nome. O amado tinha uma qualidade rara. “Ele me respeita, me trata com carinho”, confidenciava à amiga Dalma.
Infeliz e humilhada no casamento, Creuza não via pecado nesse amor nem em qualquer outro que pudesse vir a ter. Para ela, não havia nenhum motivo para se arrepender, ao contrário da sentença que o anjo da morte ditaria naquela futura noite de sábado: “Uma das vidas entre nós hoje morrerá. Mas se houver arrependimento, o laço poderá se quebrar”.
Um dia, o cozinheiro pediu Creuza em casamento. Por azar, nessa mesma época, Antônio chamou a mulher de volta para casa. Disse que ele e os filhos precisavam dela. Creuza consultou a melhor amiga.
“Não volta. Se já te batia antes, agora que você conheceu outro homem ele te mata”, aconselhou Dalma. Mas Creuza voltou.
Creuza vivia com Antônio há 15 anos. Há seis anos, por pressão dos irmãos da igreja, decidiu casar-se legalmente, para não mais viver “em pecado”. Ela nunca havia conhecido outro homem antes de Antônio. Nas primeiras vezes, ele foi carinhoso. Mas, nos últimos tempos, Antônio exigia sexo quando Creuza menos queria. E ela saía machucada dessas noites de desamor. Antônio não gostava mais da mulher. E fazia questão de não esconder isso de ninguém, muito menos da própria Creuza.
Três meses antes da visita do anjo da morte, Creuza estranhou quando Antônio decidiu comprar cama e fogão novos. A alegria durou pouco. “Eu tô comprando tudo novo. Mas nada disso vai ser pra você”, avisou Antônio.
Foi quando Creuza descobriu que o marido tinha outra. O nome dela era Ivonete, uma empregada doméstica pernambucana que guardou a virgindade até os 31 anos de idade, quando se entregou a Antônio. A relação já durava três anos. Antônio dizia a Ivonete que era solteiro.
O casal chegou a ter uma menina, que Antônio, estranhamente, batizou com o mesmo nome da caçula dos cinco filhos com Creuza: Márcia. Ivonete preferia que a menina se chamasse Roberta. Mas Antônio optou por ter duas filhas com o mesmo nome, uma com cada mulher. Creuza carregaria mais essa mágoa pelo breve resto de sua vida.
SAPATO NOVO
Atendendo ao chamado de Antônio, a manicure Dalma caminha até a casa da amiga desaparecida. Tem muito medo, mas precisa saber o que Antônio quer com ela. Talvez dê alguma notícia de Creuza.
Dalma entra na casa da amiga. A primeira imagem é aterradora, lembra um filme de terror, desses que passam de madrugada: Antônio surgindo por trás de uma nuvem de poeira, com o olhar feroz e a marreta nas mãos. Mas ele está apenas derrubando uma parte da cozinha. Dá marretadas como se odiasse a parede.
“Você sempre achou que sua amiga era uma santinha. Pois foi ela quem me largou”, diz, golpeando a parede com mais raiva. Em seguida, começa a guiar Dalma pelos cômodos. Quer que ela veja com os olhos que a terra há de comer: não sobrou nada de Creuza naquela casa. Antônio abre portas e gavetas. Nenhuma peça de roupa.
“Ela levou tudo. Foi embora para sempre. No Opala preto”, insiste Antônio.
Dalma procura vestígios de Creuza. Sabe que ela jamais iria embora para
sempre sem avisar à melhor amiga. De repente, o horror: Dalma descobre um sapatinho de couro preto, fechado e sem salto, enfiado debaixo do sofá da sala. Antônio não dava dinheiro para a mulher comprar roupa. Mas quando saiu do restaurante e pediu as contas, Creuza comprou umas coisinhas para os filhos e, para ela, um sapatinho de couro preto, fechado e sem salto.
Feliz com a compra, fez questão de mostrar a Dalma a rara aquisição. Por isso, a manicure sabe que a amiga, ainda que resolvesse ir embora às pressas de casa, nunca deixaria o sapatinho preto para trás. No entanto, ele está ali, esquecido debaixo do sofá.
O fiapo de dúvida desaparece: Dalma sabe que nunca mais verá a melhor amiga. Mas não diz nada a Antônio. Nem à polícia, ainda.
O ALMOÇO
5 de outubro de 1991. Sábado de manhã. Dinalva Ribeiro da Silva, irmã mais velha de Creuza, não vive um bom momento. O marido sofreu um grave acidente de ônibus já perto de casa, em Brasilinha, e está no hospital. Talvez nunca volte a andar. A mãe, dona Almerinda, 73 anos, quebrou a perna e tem que ser carregada para baixo e para cima.
Alguém bate palmas na frente da casa. É o cunhado, Antônio. Ele chega com a mãe, dona Maria Paulina, 61 anos, e as duas filhas mais velhas, Mônica e Cacá. Pede notícias de Creuza, como se não soubesse, há uma semana, que a mulher estava morta e esquartejada. Antônio diz que Creuza o abandonou no sábado anterior. “Ela passou por aqui? Deu notícia?”, pergunta ele.
Dinalva e dona Almerinda dizem que não. Estranham que ela tenha ido embora sem avisar à família. Mas a irmã sente um certo alívio. “Fez ela muito bem em largar esse homem...”, pensa Dinalva, mesmo sendo evangélica e, portanto, crente nos indissolúveis laços do matrimônio.
A mãe e a irmã de Creuza convidam Antônio, dona Maria Paulina e as duas meninas para o almoço. Não é uma confraternização. As relações entre as duas famílias nunca foram boas.
A mãe de Creuza jamais gostou do genro. E a mãe de Antônio odiará ainda mais a nora depois de morta e esquartejada: pelo resto dos seus dias, haverá de culpar a suposta infidelidade de Creuza pela loucura que custará ao filho Antônio a pena de 26 anos na prisão. Mas as duas mães ainda não sabem da desgraça acontecida sete dias antes. E almoçam juntas.
Dias depois, quando a polícia contar o que aconteceu com a filha, a mãe de Creuza haverá de se lembrar dos velhos tempos na secura do sertão da Bahia, onde dez dos 15 filhos morreram pequenininhos, ainda pagãos. Quando inventariar todas as cicatrizes da vida, chegará à conclusão de que as dez tristezas antigas não são nada diante da dor de uma filha esquartejada.
Mas enquanto almoça em paz, acreditando que a filha está viva e largada do marido, dona Almerinda apenas olha para Antônio e para Mônica, a neta mais velha, e lembra em silêncio. “O dia em que a Mônica nasceu, esse homem rumou a cabeça da minha filha na parede”.
Dona Almerinda morou com Creuza e Antônio por algum tempo para ajudar a criar os netos pequenos. Lembra que Antônio batia muito na mulher, não respeitava nem os resguardos. Saía para trabalhar e, por ciúme ou por ruindade, trancava a casa pelo lado de fora, deixando presas a mulher e a sogra.
Dona Almerinda lembra também o dia em que Antônio cortou o pulso de Creuza com uma faca. A polícia foi buscá-lo em casa, mas Creuza teve pena: “Prende ele não, moço”, implorou.
O ENTERRO
Duas semanas depois daquele almoço, Dinalva vai ao Instituto Médico Legal reconhecer os pedaços da mulher sem cabeça. No IML, reconhece primeiro os seios da irmã, o direito maior que o esquerdo: era o peito preferido dos cinco filhos de Creuza. Por isso, o bico é tão grande, muito mais saliente que o outro.
Lá estão também o pescoço curtinho, que parece ainda menor devido à ausência da cabeça, a barriga cheia de estrias, as axilas cabeludas por temor a Deus, os pezinhos pequenos e muito magros que eram motivo de brincadeiras desde a meninice das duas. “Ôxe, que pé mais feio e seco”, dizia Dinalva a Creuza. As duas riam.
Dias depois da ida de Dinalva ao IML, a polícia encontrará o local onde Antônio enterrou a cabeça e as mãos de Creuza. Dinalva pedirá esses pedaços que faltam para completar o quebra-cabeça. Quer enterrar a irmã inteira. A polícia devolverá apenas as mãos, com os dedos já meio comidos pela terra, porque ainda é preciso fazer alguns exames no crânio. Mas, como forma de compensação, entregará também os cabelos.
No dia do enterro, os funcionários do IML ajeitarão os pedaços dentro do caixão, tentando remontar o corpo. No lugar reservado à cabeça inexistente, estenderão a cabeleira. Dinalva levará de casa um lençol branco, para que Jesus não veja Creuza assim, tão nua. No cemitério, os vizinhos pedirão para abrir o caixão. A insistência será tanta que ela não resistirá. Os vizinhos olharão a princípio ávidos. Depois, gemerão de horror.
Desse dia em diante, Dinalva e a mãe, dona Almerinda, serão incapazes de matar uma galinha para o almoço.
“Será que quando aquele homem cortou a cabeça da minha filha ela saiu pulando, sofrendo que nem uma galinha que a gente mata pra comer?”, perguntará dona Almerinda.
JUDAS
5 de outubro de 1991 (sábado seguinte à morte de Creuza). As duas famílias, a do esquartejador e a da esquartejada, terminam em paz o almoço em Brasilinha. Das seis pessoas sentadas à mesa, apenas Antônio sabe que Creuza está morta. Antes de ir embora, ele beija o rosto da mãe da mulher que, uma semana antes, desfez em dez pedaços.
No futuro, sempre que lembrar desse beijo, dona Almerinda esfregará o rosto com a mão, na tentativa de arrancar a sujeira eternizada na carne.
“Beijo de Judas...”, murmurará entre dentes.
COLORAMA
A manicure Dalma vai ao IML um dia antes de Dinalva. É, portanto, a primeira a reconhecer os pedaços de Creuza. Dalma leu no jornal que a esquartejada tinha as unhas dos pés pintadas de rosa. Por isso, leva na bolsa um vidrinho pela metade de esmalte Colorama com proteína para unhas fracas. A caminho do IML, lembra aquela noite, a última, em que convenceu a amiga evangélica a pintar as unhas pela primeira vez.
Quando abrem a geladeira dos mortos, Dalma não sente nojo diante da carne, ossos, artérias e nervos despedaçados. Só uma tristeza imensa. Primeiro, reconhece os pés da amiga: as unhas ainda têm a cor do vidrinho que a manicure guarda na bolsa.
A polícia agora sabe quem morreu. Não será difícil descobrir quem matou.
PACIÊNCIA
28 de setembro de 1991. Noite do crime. Creuza acaba de se despedir de Dalma. Tem poucos minutos de vida.
Creuza mora a apenas 100 metros da amiga. Não demora nada a chegar em casa, a mesma na qual três semanas depois Antônio colocará outra mulher, Ivonete. Depois que Creuza morrer, Antônio dirá a Ivonete: “Tenho uma surpresa pra você”. Levará a amada para conhecer a casa do Setor “O” e só então revelará que é casado, tem cinco filhos e a mulher o trocou pelo homem do Opala preto.
Na sala, Ivonete ficará alguns minutos sem voz, cercada por aquelas crianças todas. Perguntará onde está Creuza, desconfiará de sua misteriosa ausência, e irá embora de volta para Samambaia alguns dias depois.
Só muito mais tarde conhecerá o triste fim do Creuza. Ainda assim, visitará Antônio na cadeia, perguntará por que ele fez aquilo. Antônio responderá que foi por ciúme.
Ivonete insistirá: “Mas se você gostava era de mim, porque não deixou sua mulher viver a vida dela”? Antônio não dirá mais nada.
Na cadeia, Ivonete fará amor com Antônio, mas sentirá que alguma coisa se quebrou. Abandonará o sonho de toda uma vida, que era o de se casar um dia.
Mas Creuza não terá tempo de conhecer todos os detalhes da história de amor de Antônio e Ivonete. Quando entrar em casa nesta noite, 28 de setembro de 1991, os filhos já estarão dormindo. O marido, não.
Antônio não gosta que a mulher chegue tarde em casa. E já é quase meia-noite. Por isso, Creuza vem preparada, espera mais uma briga. Mas não espera o cutelo de açougueiro que o marido tem nas mãos.
O primeiro golpe quase separa a cabeça do pescoço. Creuza cai. Antônio golpeia mais duas vezes o pescoço da mulher, até arrancar-lhe a cabeça. Em seguida, corta as duas mãos. Separa os dois braços do tronco. Depois, as pernas, que divide em duas partes cada uma.
Não é fácil esquartejar um ser humano, Antônio não demora a descobrir. Primeiro, há que se golpear várias vezes a carne com o cutelo, com força, até atingir o osso. Em seguida, quebrar esse osso com as mãos.
Mas Antônio tem uma paciência que dele ninguém esperava. Concluído o trabalho, espera o sangue escorrer bem. Lava o chão com água de mangueira e sabão em pó. Acondiciona os pedaços – menos a cabeça e as mãos – dentro de uma caixa de papelão. Coloca a caixa no bagageiro da bicicleta.
A BICICLETA AZUL
Cinco anos depois, por determinação de dona Maria Paulina, a mãe de Antônio, a bicicleta Monark azul continuará guardada num dos três quartos da casa onde tudo aconteceu.
A casa terá sido alugada a inquilinos que, a princípio, não saberão da tragédia. A partir do dia em que ficar sabendo, uma das moradoras, Tereza – 25 anos, desempregada – acordará muitas vezes no meio da noite. Pensará ter ouvido gritos de uma mulher ou ruídos de uma roda em movimento. Olhará a bicicleta imóvel com o bagageiro vazio e não dormirá mais.
Na noite do crime, cinco anos antes dos pesadelos da inquilina, é essa Monark azul que leva Antônio e os pedaços de Creuza até a vala, três quilômetros distante da casa.
Chegando ao destino, Antônio joga dentro d’água os sete pedaços de Creuza. A cabeça e as mãos estão em casa, esperando por ele. Antônio volta para buscá-las, depois as enterra bem longe dos outros pedaços, num lugar que a polícia só descobrirá no dia em que ele confessar o crime.
BRASILEIRO, CASADO
Início de 1996. Antônio tem o cabelo e o bigode mais brancos. Forte e musculoso, parece bem-disposto. É um dos presos de melhor comportamento da Papuda. Conserta vazamentos, desentope ralos, troca torneiras. Para cada mês trabalhado, abate dez dias da pena. Mantém o velho hábito: espalha na cadeia que a mulher o traía. Jura que Creuza levava homens nus para dentro de casa.
Antônio pediu à Justiça para cumprir o resto da pena em regime semiaberto. Se conseguir, terá direito ao saidão, o que significa ir para casa de vez em quando. Mas os psicólogos votam contra. São os mesmos que após o crime definiram assim o homem que esquartejou a mulher: “Personalidade impulsiva, fortemente agressiva. Tende a comportar-se de forma fria e instável”.
Quando confessou o crime, Antônio disse que matou sozinho. Mas acusou o vizinho Rosevelt Fidélis, o Russo, de ter emprestado a arma do crime e ajudado a enterrar a cabeça e as mãos de Creuza. Na verdade, ele queria apenas se vingar de Russo, por achar que ele era amante de Creuza.
No segundo depoimento, inocentou o suposto rival, mas incriminou o mecânico Anderson Pereira da Silva, que teria sido, segundo ele, autor do primeiro golpe no pescoço de Creuza. Um segundo cúmplice, Ronaldo Amaral, teria emprestado o carro e ajudado a transportar os pedaços do corpo. Outra provável vingança: Anderson e Ronaldo eram, respectivamente, irmão e cunhado da manicure Dalma, a primeira a reconhecer os pedaços de Creuza. Antônio jurou matá-la quando sair da cadeia.
No julgamento, Antônio finalmente confessou que agiu sozinho. Hoje, não quer falar sobre o crime. Acha que tudo que disser poderá ser usado contra sua intenção de sair mais cedo da cadeia. Mas não demonstra remorso. Justifica o banho de sangue daquela noite de sábado com uma única frase:
“Fiz o que qualquer brasileiro casado faria.”
TREMORES
Os filhos de Antônio vão visitá-lo na Papuda todos os domingos. Choram na hora de ir embora. Amam o homem que lhes despedaçou a mãe. Talvez porque tenham crescido ouvindo o pai e a avó paterna repetindo que Creuza não prestava.
A mãe de Antônio se espreme com quatro netos num barraco de tábuas, em Samambaia. O barraco é menor que a cela do filho. Dona Maria Paulina tem só 1,25 m de altura. Pequena demais para tanto ódio: jura que bastou o primeiro olhar para ter a certeza de que Creuza faria o filho infeliz. Não fala em assassinato ou esquartejamento. Quando precisa relembrar a história, diz: “Na noite em que Antônio fez o serviço...”
Márcia, a caçula de Creuza, tem 10 anos de idade. Quando alguém pergunta se sente saudade da mãe, a resposta é rápida. “Não. Minha mãe tinha outros machos”, responde, na língua que o pai e a avó lhe ensinaram.
Exceto pelo contínuo tremor das mãos, Márcia parece uma criança normal. Nem se lembra de ter levantado da cama naquela noite, acordada pelo barulho de ossos que se partiam.
A ALIANÇA
28 de setembro de 1991. Márcia tem 5 anos nesta noite em que desperta para o pesadelo. Sai do quarto no exato momento em que o pai corta a perna esquerda da mãe, no corredor estreito ao lado do banheiro, que liga a sala à cozinha.
Antônio para de esquartejar a mulher, pega a caçula no colo e a leva de volta para a cama. Márcia ganha um beijo de boa noite. O pai volta para o corredor estreito e acaba de arrancar o último pedaço da mãe da menina. A quatro quadras dali, o anjo da morte dorme, mas não exatamente em paz, talvez sonhe com caixões andantes, certo de que a sentença de Deus terá sido executada.
Encostada na parede, a cabeça cortada tem os olhos esbugalhados. Creuza congelou nesse último olhar a imagem do homem que amou um dia, há muitos e muitos anos. O dedo médio da mão esquerda decepada tem uma aliança amarela. Creuza pensava que fosse de ouro. Morreu sem saber que era falsa.
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