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O AVESSO DE ÉDIPO

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Correio Braziliense, 19 de maio de 1996 Por José Rezende Jr. Ilustração: Fernando Lopes @fernandolopesilustrador

Conteúdo Sensível



Neuza já está na sala de jantar. Escondido atrás da porta, o assassino espera por ela. Neuza só percebe o perigo quando sente a fisgada. A primeira facada secciona os intestinos grosso e delgado. Neuza ainda tem tempo de dizer: “Filho, não faz isso. Eu sou sua mãe.”


 


ilustração: Fernando Lopes  @fernandolopesilustrador


A MÃE


   12 de março de 1992. Quase 18h. Neuza volta da caminhada no Parque da Cidade, como faz todos os dias e não fará nunca mais depois deste fim de tarde. Abre o portão e vai entrar em casa, na 712 Sul. São três quartos. Na suíte, dormem ela e o marido, Paulo. O quarto do filho único, Paulinho, de 18 anos, tem uma porta que se abre para um pequeno jardim de inverno. No terceiro quarto, transformado em sala de tevê, o assassino espera por ela, com uma faca na mão.


    A dona de casa Neuza tem 43 anos, veste conjunto de moletom azul marinho e está um pouco tensa: a hora da chegada é sempre assim, desde aquela tarde de abril do ano anterior, quando um ladrão entrou na casa e encostou o canivete em seu pescoço.


    Naquela tarde do canivete, Paulinho, o filho, estava dormindo depois do almoço. Paulinho tem 1,92 m de altura, ­ bem maior que o ladrão, um jovem mais ou menos da sua idade. Mas quando acordou, viu a mãe com o pescoço prestes a ser cortado e não pôde fazer nada. O ladrão levou só o videocassete, mas deixou o trauma que mãe e filho jamais conseguiriam superar.


    Desde então, todas as noites, Paulo, o marido, faz a interminável ronda pela casa inteira. Procura ladrão até dentro da Brasília 80, estacionada na garagem. Findo o ritual, só aí todos conseguem dormir em paz.


    O terraço, onde a família costumava tomar banho de sol, virou zona de risco. Foi por ali que o ladrão entrou, depois de caminhar pelos telhados vizinhos. A partir de então, Neuza só vai ao terraço depois que Preto, o cão poodle, sobe a escada e avisa, com seu silêncio, que não há perigo.


    Desde aquela tarde de abril, Neuza e Paulinho combinaram um código: sempre que um dos dois chega em casa, grita do lado de fora. O outro responde lá de dentro. Sinal de que está tudo bem. Mas neste 12 de março de 1992, quase um ano depois do episódio do canivete, Neuza abre o portão sem gritar que está chegando, talvez porque a caminhada tenha sido bem mais curta que de costume. E desta vez, quem espera por ela não é o ladrão. É o assassino. E ele tem na mão uma faca com a lâmina serrilhada.


    Neuza já está na sala de jantar, que tem piso de lajota avermelhada. O quartode tevê fica bem em frente, mas ela não pode ver o assassino, escondido atrás da porta. Neuza só percebe o perigo quando sente a fisgada. A primeira facada secciona os intestinos grosso e delgado. Neuza ainda tem tempo de dizer:

    “Filho, não faz isso. Eu sou sua mãe.”

    Mas é muito tarde. 



O PAI


    O contador Paulo Jarbas chega às 19h15 do trabalho. A porta que separa a cozinha da sala de jantar está trancada. Significa que não tem ninguém em casa. Paulo procura a chave no lugar secreto: a prateleira de cima do armário da cozinha. O último da família a sair de casa sempre deixa a chave escondida nessa prateleira, que fica a poucos centímetros do teto. Mesmo sendo muito altos, Paulo e o filho têm que esticar o braço para alcançá-la, valendo-se do tato e não da visão. Neuza, baixinha, é obrigada a subir numa cadeira.


    Depois de constatar que a porta está fechada, Paulo tateia a prateleira. A chave não está lá. Acha estranho. A mulher já deveria ter voltado da caminhada no Parque. Talvez esteja na casa de alguma vizinha. Com certeza, chegará depois da chuva.


    Impedido de entrar em casa, Paulo vê o Jornal Nacional, em preto-e-branco, na tevê da cozinha. O noticiário termina. Parou de chover.


     Ilhado entre o fogão e a geladeira, Paulo telefona para as amigas da mulher. Neuza não está em lugar nenhum. Começa a ficar preocupado. A casa foi assaltada três vezes. Na última, o ladrão botou um canivete no pescoço de Neuza.


    A mulher não chega, a porta que dá acesso à sala está fechada e a chave não está onde deveria. Com um mau pressentimento, Paulo resolve tirar os pinos das dobradiças da porta, com o auxílio da chave da Brasília: é tão fácil que ele quase se convence da inutilidade de se gastar tanto dinheiro tentando defender a casa dos ladrões.


    Paulo abre a porta pelo lado dos pinos que acabou de retirar. Entra na sala, que está banhada em completa escuridão. Acende a luz. Antes não acendesse. A primeira e única coisa que vê é a mulher com quem se casou há 20 anos. Neuza está deitada no meio de uma poça de sangue. Tem uma corda enrolada no pescoço e queimaduras nas costas e pernas. Paulo fecha os olhos. Nem se preocupa em saber se o assassino ainda está por ali.



O FILHO


    Paulinho passou o dia trancado no quarto. Ouviu música no rádio, jogou xadrez e baralho. Filho único, acostumou-se à solidão. O pai ainda não chegou do serviço. A mãe acabou de sair para caminhar, como faz todas as tardes.


    O telefone toca. É a vizinha Eveline, de 15 anos, amiga de infância de Paulinho e companheira de Neuza nas caminhadas no Parque. Eveline ligou para cancelar a caminhada. Precisa estudar para a prova de Química. Paulinho informa que a mãe acabou de sair. A essa altura, deve estar exatamente chegando na casa de Eveline, que fica na quadra vizinha, a 711 Sul. 


    Paulinho se despede de Eveline e desliga o telefone. É um jovem como qualquer outro. Tem 18 anos, faz pré-vestibular no Objetivo e vai tentar pela segunda vez uma vaga para Veterinária. Adora animais. Tem um poodle, chamado Preto, que está com ele há dois anos. Já adotou gatos, porquinhos da índia, periquitos, tartarugas e peixes. Detesta um garoto da vizinhança que se diverte dando tiro de chumbinho nos pardais.


    Vai sempre ao ParkShopping, gosta de praticar esportes, ganhou medalhas nos saltos ornamentais. Agora, dedica-se à natação. Pensando bem, talvez Paulinho seja diferente da maioria dos jovens da sua idade: é muito amigo do pai e da mãe. Os três andam no Parque, saem para tomar sorvete, vão juntos ao ParkShopping, veem televisão em família. Antes do Fantástico, é Paulinho quem vai buscar a pizza. Nos intervalos da Tela Quente, ele cuida da pipoca, sua especialidade culinária.


    Na verdade, prefere o rádio à televisão. Mas neste 12 de março de 1992, quase seis da tarde, Paulinho está sozinho na sala de tevê, vendo a Escolinha do Professor Raimundo, quando ouve o barulho no portão. Espera alguns segundos. Outro barulho. E o silêncio. Paulinho sabe que não é a mãe. Ela teria gritado seu nome e ele responderia, como ficou combinado desde o último assalto. E mais: se fosse a mãe, ela conversaria com Preto, o poodle, e Paulinho ouviria. Se não é a mãe chegando, só pode ser outro ladrão.


    Paulinho tira o som e escurece a imagem da tevê. Evita desligar o aparelho: tem medo de que um pequeno click denuncie sua presença na casa. Desta vez, é ele quem vai surpreender o ladrão.


    Desde aquela tarde do canivete, Paulinho jurou que o próximo ladrão seria o último. Não é justo que o pai se mate de trabalhar para que qualquer um invada sua casa e leve embora os frutos de tanto suor. Com raiva e medo, Paulinho vai até seu quarto e abre a mesinha de cabeceira, onde a faca está guardada desde o último assalto.


    A faca foi comprada dois anos antes, no Carrefour. Na hora de passar as compras no caixa, Paulinho encontrou a arma perdida no fundo do carrinho. Nem ele, nem a mãe, nem o pai se lembravam de tê-la apanhado nas prateleiras do supermercado. Mas a faca estava lá, como se possuísse vontade própria. E foi assim que ela entrou na vida da família.


    O barulho continua. O ladrão já passou pela grade da área de serviço, instalada após o último assalto. Abriu a primeira porta da cozinha e a outra, que dá acesso à sala de jantar. Já está dentro de casa. Paulinho espera por ele atrás da porta da sala de tevê, com a faca na mão. São 20 centímetros de lâmina serrilhada. É o suficiente.


    Paulinho enxuga o suor da mão no jeans, marca Pierre Cardin. Não quer que a faca escorregue na hora H. O coração dispara. O medo, agora, é maior que a raiva. Mesmo assim, prepara o bote. Escondido atrás da porta, não vê o alvo. Calcula a distância pela sombra projetada no piso, que vai crescendo a cada passo do ladrão. Quando a sombra cresce tanto que parece escurecer o mundo, Paulinho dá a primeira facada. Ainda tem tempo de ouvir a voz:

    “Filho, não faz isso, eu sou sua mãe.”


    Mas é muito tarde.


    Paulinho dá outra facada. Depois outra, outra e mais outra, perfurando a clavícula, o braço, a orelha e a boca da mãe. Até que a faca se quebra. Agora, a mãe está caída de bruços. O filho pega uma corda de varal, dobra para ficar mais resistente, enrola no pescoço dela.


    Neuza tenta resistir. A corda escorrega para a boca. Mesmo assim, o filho puxa com força. Depois, enrola outro pedaço no pescoço da mãe e puxa com mais força. Por fim, abre a garrafa de Olho d'Água, cachaça fabricada em São José do Mipibu, Rio Grande do Norte, e derrama o líquido sobre o corpo da mãe. Risca o fósforo.



RECORDAÇÕES


    Paulinho está sentado na cama. Fica olhando as chamas, apático. “Vou morrer junto com minha mãe e minha casa”, pensa.


    De repente, corre para apagar o fogo sobre o corpo da mãe, primeiro com um travesseiro, depois com um balde d'água. Gosta da mãe, não quer que ela sofra nunca. Nem depois de tê-la assassinado.


    Extinto o princípio de incêndio, acaricia os cabelos da mulher deitada de bruços no chão da sala. Suas mãos voltam sujas de sangue. Paulinho está confuso. A lembrança do que aconteceu naquele dia só virá muito mais tarde. E, ainda assim, em pedaços, fragmentada. No momento em que acabou de matar a mãe, as recordações são muito confusas. Lembra apenas que havia um barulho no portão, uma grande sombra no assoalho da sala e uma voz dizendo:  “Filho, não faz isso, eu sou sua mãe.”


    Havia também uma faca, que agora está quebrada. Mas há outra faca na casa. Na verdade, um facão. Está no quarto de empregada, que é usado como dispensa. Paulinho pensa em ligar primeiro para um hospital, para que alguém socorra sua mãe. Depois, para o serviço do pai. Desiste. Ia dizer o quê? “Alô. Pai, desculpe incomodar: eu matei a mamãe.”


    Começa a andar de um lado para o outro, segurando o facão, com medo de que o pai chegue e Paulinho seja obrigado a machucá-lo também. Quer soltar a arma, mas não consegue.


    “Quando o papai chegar...”, pensa, com o facão grudado nas mãos.



A ÁRVORE


   Paulinho consegue soltar o facão. Troca a calça jeans manchada de sangue e sai de casa, antes que o pai chegue do trabalho. Tranca a porta que dá para a cozinha, mas esquece de botar a chave na prateleira de cima. Quando o pai chegar, terá que arrombar a porta. Só assim descobrirá o que ele fez. Antes de sair, tem o cuidado de fechar o portão para que o cachorro não fuja.


    Paulinho caminha até o Parque da Cidade. Sobe numa árvore. Pensa que talvez a natureza acalme os aflitos. Viu a mãe há poucos minutos, mas já sente uma saudade imensa, que o tempo tornará cada vez maior.


    A essa hora, o pai deve ter arrombado a porta. Talvez a mãe esteja viva e seja levada para o hospital. Paulinho quer agarrar-se ao fio de esperança, mas não consegue. Ninguém sobreviveria a tanto sangue derramado. Sobreviveria?



UM SONHO DE LIBERDADE


    Muitos anos depois, Paulinho sai da cadeia. Primeiro, passou uma temporada preso na 1ª DP, na Asa Sul. Depois, no Núcleo de Custódia, aguardando julgamento. Por fim, amargou anos e anos na Ala de Tratamento Psiquiátrico da Papuda.


    Livre, Paulinho volta para casa. Sabe que nada será como antes, embora nada tenha mudado: os móveis, a pintura, os quadros na parede. Até o retrato, pintado a óleo, de quando ele tinha oito anos e era a alegria da família. Tudo no mesmo lugar, como se nada tivesse acontecido.


    Assim, ele sabe que ao cruzar a porta da sala de televisão, onde anos atrás tocaiou a sombra com uma faca na mão, ­vai encontrar a estante branca com os mesmos livros, o aparelho de som, a tevê colorida e a cama de solteiro com gavetas usada como sofá para ver o Fantástico e a Tela Quente.


    Mas quando entra na sala de televisão, vê a única coisa que jamais esperava encontrar ali: a mãe está sentada na cama-sofá, recostada numa almofada. Usaum vestido azul muito claro. Sorri para o filho. Paulinho quer abraçar e beijar a mãe. Mas não consegue mover um músculo.


    “Mãe, disseram que você estava morta”, balbucia, enfim.

    A mãe permanece em silêncio, sorrindo. O pai entra na sala de tevê e desfaz o mistério:

    “Filho, ela estava viva quando eu cheguei em casa. Levei sua mãe para o hospital e ela sobreviveu.”

    “Mas por que não me contaram a verdade? Por que me deixaram preso esses anos todos?”, pergunta Paulinho.

    “Porque nós achamos que você merecia um castigo pelo que fez”, justifica o pai.


    Paulinho não sabe se comemora ou chora. Abre os olhos na escuridão, sem saber onde está. Demora a reconhecer o local: não é a sala de tevê, é a cela da prisão, e a mãe está morta. Não sabe se acordou de um sonho ou de um pesadelo.


Durante muito tempo, perguntará: 

    “Isso é real? Será que a minha mãe está viva e armou toda essa farsa com o meu pai?”   

    “Não, ninguém seria capaz de tanta maldade”, concluirá, tempos depois


ALGEMAS


    Quando começa a chover, Paulinho desce da árvore onde estava desde que matou a mãe. Começa a andar pela avenida W 3. Não pensa em fugir. Na verdade, deseja ser preso. Mas não quer se entregar. Continua andando na chuva, sem destino.


     Enquanto isso, na casa da esposa assassinada, o pai não quer acreditar na culpa do filho. Pensa que Paulinho está na aula e voltará a qualquer momento. Mas o filho não volta nunca.


    Paulo continua não acreditando mesmo quando os policiais lhe mostram uma calça jeans, marca Pierre Cardin, manchada de sangue. Mas às três da madrugada, os faróis do carro da Polícia finalmente encontram o assassino. Paulinho está encharcado até a alma. Leva uma chave no bolso, a que deveria ter ficado na prateleira de cima do armário.


    “Não sei porque eu fiz isso”, repete, enquanto os policiais prendem seus pulsos. Paulinho acha que as algemas são desnecessárias: ele seria incapaz de matar um pardal. Os policiais pensam diferente: se um cara mata a própria mãe, o que não faria com os outros?


    Às quatro da madrugada, o pai vai à delegacia. Olha o assassino da esposa e pergunta pela primeira e última vez:

    “Filho, por que você fez isso?”

    “Porque eu estava com muito medo, pai”, responde Paulinho, chorando como não chorava desde que era menino.

    O pai abraça Paulinho e sente que a decisão de perdoar o filho estava tomada desde sempre.



PRAGA DE MÃE


    Hoje, quatro anos depois, Paulinho está na Ala de Tratamento Psiquiátrico (ATP) da Papuda. Não toma remédio controlado. Apenas conversa com a psicóloga de vez em quando. Não sabe quando sai dali. Vai continuar fazendo exames psiquiátricos periódicos até o dia em que conseguir o tão sonhado “Laudo de Cessação de Periculosidade”.


    Ele é diferente dos presos comuns, aqueles que cumprem penas pré-fixadas e sabem que vão sair daí a tantos anos. Paulinho, só no dia em que os psiquiatras acharem que não oferece mais perigo. Talvez não achem nunca.


    Enquanto a periculosidade não cessa, circula livremente pelas dependências da penitenciária. De vez em quando, vai inclusive ao gabinete do diretor, levar lanche. Trabalha na cantina, controlando o estoque. Também faz sucos de frutas e usa uma faca para isso. Só para isso. Nunca fez mal a mais ninguém. Nem antes, nem depois daquele fim de tarde.


    Os laudos psiquiátricos falam em “distúrbio passivo-agressivo”. Atestam que ele tem “personalidade dividida, ambivalente” e “tendência à solidão e ao isolamento”. Definem: “É sonhador e desinteressado.”


    Mas a olho nu, Paulinho parece inteligente, simpático, um pouco tímido, muito franco. Fixa os olhos grandes no olhar do interlocutor. Não se vê ali nenhum traço evidente de loucura ou maldade. Pior assim.


    Sente saudade da mãe. Quando se lembra dela, a primeira imagem é sempre a mesma: uma mulher deitada numa poça de sangue. Depois, volta à infância, quando a mãe fazia bolo de chocolate e deixava que ele raspasse a massa do fundo da tigela. É uma lembrança mais doce.


    O interlocutor faz a pergunta óbvia ao garoto que matou a mãe: “Por quê?” Paulinho dá a mesma resposta de quatro anos atrás, quando abraçou o pai, os dois chorando numa delegacia de polícia: “Medo.”


    O interlocutor insiste: “Mas e as outras facadas? E o estrangulamento? E o incêndio? Você já sabia que era sua mãe. Por que continuou matando?”


    Agora, a resposta é mais difícil. Paulinho arrisca uma volta no tempo e tenta explicar aquele fim de tarde:

    “Eu ouvi a voz dela dizendo: ‘Filho não faz isso, eu sou sua mãe’. Vi que a pessoa que eu estava matando era ela. Mas ao mesmo tempo não era a minha mãe, ainda era o ladrão que estava invadindo a minha casa para roubar e cortar o pescoço da minha mãe. E eu não conseguia controlar a faca.”


    Paulinho também procura uma explicação. Talvez tivesse um ódio inconsciente da mãe, disse-lhe certa vez um psiquiatra. Talvez, quando menino, tenha levado uma surra e jurado vingar-se um dia. Paulinho duvida. Revira na memória motivos para odiar a mãe. Não encontra.


    Reconhece que tinha uma revolta contra qualquer forma de autoridade. Quando a mãe queria obrigá-lo a estudar, ele se rebelava. Mas à noite, fechava a porta do quarto, esperava que todos dormissem e só então abria o livro para estudar, escondido.


    Paulinho continua à procura de motivos para odiar a mãe. Mas só consegue se lembrar de uma passagem engraçada:

    “Uma vez eu fiquei com raiva porque queria sair de bicicleta em vez de estudar e a minha mãe avisou: ‘Se você fizer isso, o pneu da bicicleta vai furar. E praga de mãe pega, viu?’ Pois foi só eu acabar de sair e o pneu furou mesmo”, lembra, sorrindo.


    Depois, fica sério: “A verdade é que eu não sei por que matei minha mãe. E se eu não sei, quem é que pode saber?” 



A CHAVE


    Paulo, o pai, acaba de chegar do trabalho. Está parado diante da porta que separa a cozinha da sala de jantar. A porta está fechada, claro: a mulher está morta e o filho, preso. Mesmo assim, Paulo mantém o hábito de deixar a chave escondida na prateleira de cima do armário. Como se alguém além dele pudesse chegar um dia.


    Estica o braço e tateia o esconderijo. O coração dispara: a chave não está no lugar secreto. Ele tem certeza de que a deixou ali quando saiu pela manhã. Isso significa que tem alguém dentro de casa. E só pode ser Paulinho.


    Disseram que o filho é esquizofrênico. Paulo nunca acreditou. Mas se for verdade? Matou a mãe, fugiu da cadeia e agora voltou para matar o pai, seis meses depois. Paulo hesita. Não sabe se foge ou vai ao encontro do visitante. Resolve fazer um pouco das duas coisas: entrar em casa ­deixando escancaradas as portas atrás de si, reencontrar o filho e fugir, caso ele tente matá-lo.


    Vai à área de serviço, abre o basculante que dá para o quarto de Paulinho e grita o nome do filho. Silêncio. Paulo tenta recuperar a calma. Raciocina: o filho não fugiria. Se fugisse, não voltaria para casa: seria o primeiro lugar onde a polícia o procuraria. Se voltasse para casa, não mataria o pai. Ou mataria?


    Paulo volta à cozinha e tateia novamente a prateleira de cima do armário. Milagre: a chave está lá. Sempre esteve. Como não a encontrou antes?

    O pai abre a porta, aliviado e triste. Amanhã é dia de visitar o filho na cadeia.



ENVELHECER


    Paulinho pediu ao pai que tirasse uma foto de Preto, o poodle, para matar a saudade. Da última vez que o viu, o cachorro tinha dois anos. Hoje, tem seis. No retrato, Preto aparece já com alguns pelos brancos perto do focinho.


    “Meu cachorro está ficando velho. Talvez nem me reconheça quando eu voltar para casa”, teme.


    Paulinho mede o tempo pelas novidades desconhecidas do mundo exterior. “O ParkShopping já tem duas alas novas. Construíram o Liberty Mall e eu nem sei onde fica. No meu tempo, Brasília tinha uns três shows por ano. Agora, é todo fim de semana”, compara, contabilizando a juventude perdida.



MANHÃS


     O pai visita o filho todos os domingos na Papuda. Enfrenta filas e o constrangimento de ser revistado nos mínimos detalhes. Nunca mais perguntou ao filho o porquê daquele dia. Chega à Papuda antes do meio-dia e vai embora depois das quatro da tarde. Às vezes, cansado, tira uma soneca na cama do filho, na Ala de Tratamento Psiquiátrico. A cela tem seis criminosos, todos tidos como loucos. Um deles, seu filho, matou a mãe. Mas Paulo não tem medo de ser surpreendido durante o sono.


    Na área de serviço da casa onde continua morando, há uma pequena mesa de madeira. Nela, Paulo, Neuza e Paulinho tomavam juntos o café da manhã, todos os dias. Nas manhãs que se seguiram à desgraça, meses a fio, ele continuou sentando-se sozinho nessa mesma mesa. Para chorar.


    Talvez nunca consiga entender o que levou o filho a fazer aquilo. Tenta a todo custo acreditar na primeira explicação que ouviu de Paulinho, quatro anos atrás, numa delegacia: medo. Tem apenas duas certezas: 


  1. Paulinho não é doido. 

  2. Paulinho precisa do seu apoio.


    Paulo já perdeu a mulher. Não quer perder também o filho. Quer que ele volte logo para casa. Desabafa: “Se eu tivesse alguma dúvida, seria o último a querer que ele fosse solto, porque eu seria o primeiro a correr perigo. Mas meu filho não é um psicopata.”


    Será que coração de pai, que nem o de mãe, nunca se engana?



EM NOME DO PAI 


    Paulinho sabe da quase impossibilidade de reconstruir a vida. “É como colocar um tapete em cima de um lugar que não tem mais chão”, compara.


    Sabe também que a vida seria muito pior se depois de perder a mãe não tivesse o pai do seu lado. Talvez nem estivesse vivo. No dia do crime, pensou duas vezes em suicídio: primeiro, quando quis incendiar a casa e morrer junto com ela. Depois, quando ficou à espera do pai, segurando o facão. Mataria o pai e furaria o próprio coração em seguida: “Para que ninguém sofresse mais”, pensou, naquela hora.


    Mesmo se sobrevivesse ao abandono do pai, Paulinho pensa que provavelmente teria virado bandido, mergulhando de vez no mundo da prisão. É um mundo à parte. Já viu preso esfaqueando preso, homens enlouquecendo, planejando fugas impossíveis, traficando e consumindo merla, cocaína e maconha. Viu e não disse uma palavra sequer: aprendeu cedo a primeira lei da selva.


    Viu, também, um colega abrindo um cadeado com o ferrinho do headphone, num piscar de olhos. Viu um estelionatário falsificando cheques com estilete e cola: cortava uma fatia da folha do cheque, no espaço onde estava escrito o valor, e colava outro pedaço por cima, com uma quantia bem maior. Contando, ninguém imagina a perfeição. Uma obra de arte.


    Chegou a uma conclusão: “Quando falam que prisão é universidade do crime, não estão brincando. Se eu quisesse, saía daqui com diploma. Mas não quero. Pelo meu pai.”


    Paulinho guarda com carinho o retrato de Preto, o poodle envelhecido, mas não tem nada que lembre a mãe. Um dia, os psiquiatras quiseram mostrar algumas fotos, para ajudá-lo a recuperar a memória de tudo o que aconteceu naquele dia. Paulinho concordou, desde que não houvesse ali nenhuma fotografia da mãe morta. As fotos eram do local do crime. Olhando com atenção, uma delas mostrava, bem no cantinho, o pé de uma pessoa deitada.


    “Eles fizeram de propósito. Era o pé da minha mãe. Foi horrível”, lembra, querendo esquecer.



UM FINAL FELIZ


    Desde menino, Paulinho imagina o céu como uma biblioteca. Todos os livros têm capa marrom e são do mesmo tamanho. Muda apenas o número de páginas. Cada  obra na Grande Estante conta a história de uma pessoa. Quem morre e merece o céu tem o direito de ler o próprio livro e aprender onde errou.


    Paulinho sabe que a mãe está no céu. E tem certeza de que é para lá que ele também vai, depois de todos esses anos vividos no inferno. Pela sua lógica, ele fatalmente reencontrará a mãe qualquer dia desses. É uma perspectiva ao mesmo tempo boa e angustiante: Paulinho não sabe o que dirá a ela.


    Primeiro, ele quer ler e reler o livro da sua vida, decorar página por página. Aprender tudo sobre si mesmo, entender os motivos, conhecer as respostas. E só depois disso, apresentar-se diante da mãe.


    Imagina que saberá, então, o que dizer a ela. Imagina que talvez nem seja preciso dizer nada: a essa altura, a mãe já terá perdoado o filho. Imagina que esse seja um final feliz. O único possível. 




 
 
 

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