Planeta Arte
- joserezendejr
- 25 de fev.
- 9 min de leitura
Atualizado: 18 de abr.
(revista Traços, nº 21 / dezembro de 2017)
Por José Rezende Jr.
Fotos: Thaís Mallon
Quem disse que museu é só para elite ver? Estrategicamente erguido a uma pequena caminhada desde a Rodoviária, o Museu Nacional recebe visitantes de todas as quebradas. “Arte é terapia”, diz a mãe, dona Francisca, moradora de São Sebastião. “Arte é analgésico”, discorda o filho Clayton, cobrador de ônibus, morador de Águas Lindas, ambos a bordo do museu em forma de disco voador

No meio da distância entre o esqueleto do Touring Club e a via L2 Sul tinha um vazio. Até que um objeto não identificado pousou ali, no comecinho de Esplanada dos Ministérios.
Era uma esfera de concreto cortada ao meio com um anel em volta, feito o planeta Saturno, e uma rampa por onde – houve quem imaginasse – desceria um humanoide, talvez um clone de Oscar Niemeyer, com a saudação de praxe: “Olá terráqueos candangos de todas as galáxias. Venho em missão de paz”.
Não faltaram reações contrárias ao alienígena a construção em si, não o humanoide inexistente), que na verdade parecia trazer uma declaração de guerra. Não satisfeito em cobrir de cimento o que era verde, ainda ousava ofuscar o brilho da Catedral, joia arquitetônica desenhada – quem diria? – pelo mesmo inventor do tal ovni de concreto.
“Coitada de Brasília, Oscar Niemeyer não gosta mais dela”, escreveu a arquiteta e doutora em história Sylvia Ficher, no artigo Oscar Niemeyer e Brasília: criador versus criatura, publicado na revista de arquitetura e urbanismo mdc.
“E assim, de projeto em projeto, cada vez mais intervindo na escala monumental da cidade, cada vez mais rompendo a graça e elegância da Esplanada dos Ministérios, chegou a vez do Complexo Cultural da República, com sua nanica biblioteca – nanica, talvez, por conta de um inconsciente desinteresse por edifícios úteis – e sua cúpula-museu – nem tão cúpula assim, menos ainda museu. De quebra, a bela Catedral Metropolitana perdeu sua ambientação urbana e, para piorar, foi estrangulada pela gravata de concreto que lhe dá uma rampa sem rumo ou razão.”
Os terráqueos contra-atacam

Era o vazio invadindo o vazio. Nem paredes internas onde pendurar os quadros ele tinha. Mas um dia, como na fábula, o patinho (elefante?) branco e feio transformou-se em museu e foi se enchendo do belo. Não só do belo, mas também do que muita vezes provoca repulsa, incomoda e faz pensar, como deve ser o papel da arte.
E eis que terráqueos candangos de todas as galáxias começaram a subir em massa a rampa futurista do Museu Nacional (MuN), e logo eram centenas, milhares, milhões – 7,7 milhões de visitantes em dez anos. Vindos não só de automóvel, de todas as Asas e Lagos, mas também a pé, da Rodoviária do Plano Piloto, caldo de cana gelado e pastel outrora fumegante esfriando ao longo da curta caminhada.

E como se para vingar o cerrado invadido pelo concreto, eles por sua vez invadiram o concreto do Complexo Cultural da República a bordo de skates, bikes, patins e patinetes. Namoraram, tomaram cerveja, comeram pipoca, dançaram de tudo – do tango ao frevo, do breaking ao pole dance.
E plantaram na área mais nobre do Plano Piloto um ponto de interseção de todas as periferias: jovens de Samambaia, Ceilândia, Recanto das Emas, Riacho Fundo, São Sebastião e demais quebradas, que todo domingo, armados com as afiadas rimas do rap, se digladiam na poeticamente sangrenta Batalha do Museu. “Saaangue! Saaangue! Saaangue!”, entoam os novos gladiadores.
Some-se a isso inúmeras epifanias, como o show de Elza Soares, que reuniu uma multidão de 20 mil devotos, e o Favela Sound – Festival Internacional de Cultura de Periferia, ambos realizados na área externa do MuN, e desmancha-se no ar o velho clichê de que museu é coisa de elite.
A ocupação acontece também do lado de dentro. Queiram ou não queiram os habituais frequentadores de exposições de arte pelo mundo afora, o Museu Nacional (também) é do povo. Desse mesmo povo que, juram as estatísticas, não vai a museu. Como explicar então os livros de registros de visitantes das mostras em cartaz, dando conta que estes vêm não apenas do Plano Piloto, do resto do Brasil e do estrangeiro, mas também de Sobradinho, Guará, Gama, Águas Lindas, Valparaíso, Planaltina?
“Todo museu precisa conhecer o território a que pertence. Tem que saber quem é, onde está e com quem fala”, avalia o coordenador do MuN, Wagner Barja. “Nós pertencemos ao território da Rodoviária. Um museu ao qual o povo não pode ir a pé torna-se utopia. Brasília já é uma utopia, não faria sentido criarmos um museu também utópico. Claro que dialogamos com a utopia, mas temos uma coisa bem concreta, que é o povão aqui dentro”.
A percepção do mundo
O professor de jiu-jitsu Renê Domingos dos Santos, 42 anos, morador da Granja do Torto, aproveita a caminhada da Rodoviária até o Museu para colocar em dia a conversa com os filhos. A mais velha, Sara, tem 8 anos; o mais novo, que também se chama Renê, 7. “É um programa familiar”, explica o pai, que leva os filhos ao MuN pelo menos de três em três meses, ou sempre que uma nova exposição entra em cartaz.
“Conhecimento é a única coisa que ninguém tira da gente, e é a única coisa que pode tirar o país da situação em que se encontra. O maior legado que um pai pode deixar para os filhos é uma boa percepção do mundo, e a arte é quem melhor cumpre esse papel.”
Tantas visitas dominicais depois, Renê, o caçula, continua encantado com o museu em si. “Parece um planeta, aquele que tem os anéis”, compara. Sara se encanta com o conteúdo. Passeia entre as mais de 400 obras da mostra monumental que ocupa dois andares inteiros do MuN, mas morre de amores pela pequena exposição Traço Suspenso, numa salinha bem acanhada, com desenhos do brasiliense Mateus Gandara, que foram publicados sobretudo em zines.
“Quero ser desenhista”, comunica Sara.
Mateus morreu de câncer em 2015, aos 28 anos de idade, mas sua obra continua viva, inspirando uma menina de 8 anos que visita o Museu de três em três meses para adquirir a única coisa que ninguém poderá tirar dela.
A beleza que alivia a dor

Uma manhã de domingo igual a todas as outras – não fosse o fato de que, aos 65 anos de vida, Francisca Fernandes, moradora de São Sebastião, entra pela primeira vez num museu. Guiada pelo filho, o cobrador de ônibus Clayton Fernandes de Souza, que mora em Águas Lindas, dona Francisca faz selfie diante de cada obra que admira.
“Arte é terapia”, diz a mãe. “Arte é analgésico”, discorda o filho, que também é músico e sonha com uma oportunidade no distante planeta arte.
“O trabalhador não tem poder aquisitivo para consumir arte, a passagem de ônibus é cara, o trabalho cansa o corpo, a televisão maquiniza a mente. Eu queria que a arte estivesse mais presente em cada cidade satélite, para mudar esse quadro”, lamenta Clayton.
Dona Francisca, ao contrário, prefere manter o foco no encanto das muitas descobertas. “Tanta coisa bonita! Vou levar inspiração para o meu trabalho em crochê”, diz, enamorada por um enorme e intrincado painel do paulista James Kudo.
Ih, dona Francisca, provoca o repórter, vai ser difícil fazer algo parecido em crochê.
Ah, meu filho... O difícil é que é o mais bonito.
Arte para todos
Ao lado da esposa Denise, o advogado Sérgio Carvalho caminha feliz entre pinturas, esculturas, fotografias, vídeos, instalações e desenhos da exposição de arte brasileira contemporânea Contraponto. São trabalhos de Antônio Obá, Berna Reale, Camila Soato, César Meneghetti, Flávia Junqueira, Gil Vicente, Gisele Camargo, José Rufino, Laura Gorski, Lucia Koch, Nelson Leirner, Rochelle Costi, Sofia Borges, Thais Helt, entre outros artistas de renome.
Sérgio Carvalho perde alguns minutos admirando cada obra, como se a visse pela primeira vez – quando, na verdade, todas pertencem a ele, que cedeu 425 peças de sua coleção para essa mostra, em cartaz até fevereiro de 2018. A coleção passa a maior parte do tempo dispersa pelas casas de parentes e amigos.
“Meu sonho é tornar a coleção pública. Não faz sentido guardar tudo isso para mim e meia-dúzia de eleitos. Eu queria colocar pelo menos um ônibus à disposição das crianças da Ceilândia, de Samambaia, de todas os satélites, para que elas viessem ver a exposição, mas não consegui apoio”, lamenta.
O colecionador bancou do próprio bolso dois terços dos custos da mostra, e não se arrepende. Abre um sorriso ao ser informado que sua coleção, reunida ao longo de 15 anos, vai servir de inspiração para o trabalho em crochê de uma senhorinha que entrou num museu pela primeira vez na vida. Como se dissesse, em silêncio: “Ah, só isso já vale todo o esforço”.
Tradição e ruptura
O acervo permanente do Museu Nacional conta com 1.200 obras assinadas por nomes como Portinari, Di Cavalcanti, Djanira, Amilcar de Castro, Guignard, Cícero Dias, Ianelli, Benedito Calixto, Carlos Scliar, Inimá de Paula, Pancetti, João Câmara, Milton da Costa, Teruz, Burle Marx, Antônio Bandeiras, Heitor dos Prazeres, Darlan Rosa, Ralph Gehre, Karina Dias, Sanagê Cardoso, Cirilo Quartim, Naura Tim, Miguel Simão, Luzia Simons, Divino Sobral, Luiz Gallina Neto, Bené Fonteles, Wagner Hermuche, Antônio Peticov, Josafá Neves, Glênio Bianchetti, Gisel Carriconde, Diego Bresani, José Roberto Bassul, Marianne Peretti, Jean François Rauzier, Júlia Milward, Janaína Miranda Lima, Elder Rocha Filho e muitos outros.
O acervo permanece guardado a sete chaves numa caixa forte climatizada a 20 graus e umidade relativa do ar entre 50% e 60%, à qual poucas pessoas têm acesso. O MuN também é hoje lar temporário de outras 1.300 obras do Museu de Arte de Brasília (MAB), que passa por reformas.
Em dez anos, foram realizadas nada menos que 267 exposições, com obras do acervo próprio e de outros museus e instituições públicas e privadas, a exemplo de EntreSéculos, um panorama da arte brasileira dos séculos 19 e 20, EntreCopas, que apresentou a evolução da arte produzida no Brasil no intervalo entre os dois Mundiais realizados no país (1950 e 2014), e Não matarás, uma reflexão sobre a violência da ditadura, com trabalhos do catalão José Zaragoza e outros 42 artistas.
Destaque especial para as duas edições de ONDEANDAONDA, cartografia da atual produção artística do DF e Entorno, uma inédita parceria com galerias de arte locais que ajudou a revelar e/ou consolidar vários talentos.
Outro destaque foi a mostra MUNDEZ, na qual grafiteiros como Toys, Brixx Furtado, Guga Baygon e Gilmar Satão foram convidados a reinterpretar obras de Di Cavalcanti, Alfredo Volpi, Tarsila do Amaral, Rubem Valentim e Anita Malfatti, entre outros. As obras-primas originais e as releituras em spray ficaram expostas lado a lado. Mas, ao final da mostra, em respeito ao caráter efêmero dessa arte urbana, as paredes foram lixadas e pintadas de branco, e os grafites perderam-se para sempre, e fim.
A ousadia prossegue em 2018, com a mostra Arte do Sinal, ainda em processo de formatação. A ideia é reunir artistas que ganham a vida nos semáforos. Malabaristas, equilibristas, mágicos, engolidores de fogo e estátuas humanas trocarão provisoriamente o trânsito nervoso da cidade pela calmaria da área externa do MuN, onde poderão exibir sua arte e, é claro, passar o chapéu, como manda a tradição.
Não censurarás
Na esteira das manifestações conservadoras que levaram ao fechamento da exposição Queermuseu, no Santander Cultural de Porto Alegre, o pastor e deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP) fez questão de visitar o MuN com seus discípulos, para inspecionar a exposição Não matarás. Foi em busca de inexistentes exaltações à pedofilia e outras perversões. Não encontrou o que procurava e ainda levou desaforo para casa.
Feliciano perguntou a uma visitante, que estava acompanhada do marido e do filho, se ela não achava indecente uma vídeo instalação do grupo brasiliense Corpos Informáticos que mostrava uma mulher correndo nua. Teve que ouvir a seguinte resposta: “Não, deputado. Indecente é o que os senhores fazem no Congresso Nacional”.
Oscar, um sujeito muito bom

Boa parte das exposições realizadas ao longo destes dez anos contou com um visitante muito especial: Raimundo Maciel dos Santos, maranhense de Samambaia, que desde 2007 estaciona o carrinho de pipoca em frente à rampa do Museu Nacional. Graças à simpatia, ao ponto privilegiado e às políticas públicas de inclusão social, o pipoqueiro formou três filhos na faculdade. Dois deles foram aprovados em concurso público.
Sêo Raimundo orgulha-se de ter sido oficialmente incorporado ao patrimônio da casa: a fotografia Museu Soturno, que mostra o seu solitário carrinho de pipoca iluminando a fachada noturna do MuN, de autoria do José Roberto Bassul, enfeita uma das paredes da sala da diretoria, e em breve estará na capa do livro que celebra os dez anos do Museu Nacional.
Fã de Niemeyer, para ele pouco importam as eventuais falhas do projeto. Não interessa se a porta não é grande o suficiente para permitir a entrada de obras como o painel Guerra e Paz, de Portinari, que enfeita o edifício-sede da ONU e havia sido emprestado ao MuN. Ou se não é possível manter em funcionamento uma oficina de restauração, uma vez que o Museu não tem janelas e os produtos químicos altamente tóxicos levariam os servidores à morte.
Para sêo Raimundo, o que vale é a beleza e a ousadia arquitetônica que ele há dez anos não se cansa de admirar.
“Olha, eu já trabalhei de pedreiro e lhe digo com toda sinceridade: o sujeito tem que ser muito bom pra fazer uma obra que nem essa, viu?”
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